sexta-feira, fevereiro 18, 2005

A REPRESENTAÇÃO POLÍTICA E O NOSSO SISTEMA ELEITORAL

O horizonte das próximas eleições deve levar-nos a reflectir sobre a experiência do que tem sido o nosso percurso na construção da «democracia», mormente no que se refere ao exercício do mandato dos deputados que foram eleitos em 1992. Apesar da guerra e de todos os constrangimentos que podem ser aduzidos a favor da ideia generalizada do fraco desempenho dos deputados, um facto positivo é de saudar: a manutenção e afirmação da Assembleia Nacional, como pilar da coesão nacional e de ter simbolizado a certeza de que a democracia é possível entre nós. Ou seja, a avaliação da prestação dos nossos deputados não é nada positiva. Contudo, não é por essa razão que devemos deixar de constatar o que de positivo representa a experiência que foram os doze (12) anos de mandato. Desde logo, um facto positivo é que hoje sabemos quais foram as coisas boas e más produzidas pela referida Assembleia; hoje é possível sabermos o que é que, efectivamente, foi feito; hoje, também, é possível sabermos que relação de diálogo é que os deputados mantiveram com os cidadãos; e é ainda possível sabermos a capacidade de representação que cada um dos deputados, ou grupos parlamentares, exercem no interesse dos eleitores. Do mesmo modo, fruto dos doze (12) anos passados, por um lado, são do domínio público as precárias condições de trabalho com que se confrontam os grupos parlamentares, por outro lado, também, é do conhecimento da sociedade os critérios pouco eficazes (mas que se compreendem pelo tempo em que ocorreram) de escolha e selecção dos cidadãos integrantes das listas de candidatos a deputados nos partidos políticos. É óbvio que alguns destes problemas se referem aos encargos da democracia a que o Estado não se pode (ou melhor não podia) furtar, e que são, quanto a nós, mais fáceis de se resolver, havendo vontade política, porém, outras questões, designadamente as referentes à qualidade, à prestação e ao diálogo dos deputados com os eleitores, suscitam as fragilidades do nosso sistema político, na sua vertente do sistema eleitoral. Em boa verdade, quem acompanha a acção dos nossos deputados, ou acompanhou durante o mandato ainda em curso, certamente há-de constatar que os mesmos têm uma prestação muito aquém do desejável e porque não desejado, quer em termos de trabalho individual, quer em termos de trabalho nas Comissões que integram, e, inclusivamente, ao nível dos grupos parlamentares. Para confirmar essa constatação basta verificar o reduzido número de iniciativas legislativa ou de outra natureza, como sejam: interpelações ao Governo, inquéritos parlamentares, visitas de trabalho, etc. Outra área tão reveladora da deficiente prestação dos representantes do povo, tem que ver com a quase inexistente aproximação dos eleitos aos eleitores. Embora não possa sustentar a reflexão que faço em dados estatísticos, presumo que seja aterrador o balanço neste aspecto; não estaremos, por isso, longe da verdade se afirmarmos que existem muitos deputados que são desconhecidos dos cidadãos; que não se lhes conhece qualquer iniciativa parlamentar, nem sequer a favor ou no interesse do círculo pelo qual foram eleitos (no caso provincial). Esta constatação encerra, por conseguinte, duas questões fulcrais, uma delas que tem a ver com responsabilização política e outra, que está interligada com a primeira, relacionada com a legitimidade da representação democrática. É muito provável que muitos deputados representam províncias às quais não se sentem especial e afectivamente ligados; muitos apenas integraram o respectivo círculo em virtude da ligação umbilical que têm com a província. De certo modo, há razões que podem justificar essas ocorrências; na medida em que não tivemos ainda um período de exercício democrático em normalidade, que pudesse pôr em evidência os valores e as qualidades políticas de muitos cidadãos que mereceriam, certamente, uma oportunidade na casa das leis para representar o seu povo. Mas também é certo que muitos tiveram oportunidade para mostrar o que valem e podem e não o fizeram. Outra razão, míope e que representa um estádio de entorpecimento muito maior do que é efectivamente a política, que não pode ser descurada, é a ideia, de certo modo alastrada pela consciência de muito boa gente, de que os partidos políticos representam corporações de amigos «fixes» que lutam por conseguir o poder para se servirem ou repartirem o bolo, ao invés de servirem o interesse público. Todavia, o problema do distanciamento dos eleitos aos eleitores não pode ser apenas atribuída à fraca capacidade política dos eleitos ou à falta de condições que houve, sobretudo no período de guerra; deve reconhecer-se, em rigor, que o nosso sistema eleitoral, proporcional, de listas nacionais - considerando embora a deriva dos círculos provinciais na nossa organização do sistema eleitoral - tem uma influência preponderante no comportamento dos deputados, que acabam por não se sentirem especialmente responsabilizados em relação aos cidadãos. É evidente que o sistema eleitoral proporcional tem a vantagem de permitir uma maior representatividade das tendências políticas existentes no país, uma vez que permite que os partidos pequenos tenham representação parlamentar, além de que favorece a coesão nacional. Tem, no entanto, a desvantagem de permitir a não aproximação e responsabilização dos eleitos perante os eleitores, na medida em que a integração dos deputados, em lugar elegíveis, nas listas, depende exclusiva e «excessivamente» da sua fidelidade partidária, independentemente das qualidades, e provas dadas, que tiver para representar o partido ao nível do círculo provincial, por exemplo. Ou seja, a mim me parece, que a legitimação dos nossos deputados advém mais da força histórica, ou política, ou social (enfim) que o partido enquanto organização colectiva tiver, do que propriamente em razão do prestígio e das garantias que o grupo de candidatos, individualmente considerados, representa. É por essa razão, tendo em conta a experiência que o país acumulou, ainda que pouca e em circunstâncias particularmente difíceis, e tendo em vista o aprofundamento do processo democrático, que vale a pena reflectirmos sobre a hipótese de no futuro, no quadro da reforma constitucional, discutir-se o emagrecimento dos círculos provinciais, de modo a termos os deputados mais próximos dos cidadãos, mais conhecidos dos cidadãos, mais preocupados a mostrar trabalho e portarem-se dignamente, porque só deste modo poderão garantir a reeleição nos pleitos seguintes e assim assegurarem os mandatos por que os respectivos partidos lutam. E só assim os partidos políticos preocupar-se-ão em indicar para a eleição nos círculos locais (que seriam provinciais) os que estiverem melhor colocados, os que tiverem melhor reputação e os que ofereçam garantias de um bom desempenho. De contrário, os aparelhos partidários continuaram a privilegiar a militância cega, o que implicará, tendencial e eventualmente, ao afastamento dos mais capazes politicamente; e assim continuaremos a assistir, aos montes, deputados incapazes de representarem os círculos em que são eleitos, porque o critério de selecção não foi mérito, nem a capacidade política, mas sim as «boas graças» ao chefe. Atente-se que não falo dos mais capazes academicamente, nem sequer o que defendo seja a «meritocratização» da política, não. Falo da capacidade e do mérito político. Não defendo, nem jamais defenderei que a política seja exclusivo dos são adestrados pela academia, não. Aquilo que penso é que os partidos devem ir buscar aqueles que localmente, quer sejam simples professores, quer sejam funcionários públicos, quer sejam operários, quer sejam engenheiros, quer sejam advogados, quer sejam economistas, quer sejam camponeses, demonstrem ter capacidade de liderança, de defesa dos interesses do sector que representam e de articulação com a sociedade. Provavelmente, há quem espere que ao falar do nosso sistema eleitoral, o sistema proporcional, faça referência ao modelo mais díspar do nosso, o sistema maioritário com círculos uninominais. E com razão! Não há dúvida de que o sistema maioritário com uninominal tem uma grande vantagem: um círculo, um eleito. De tal modo que vai ao extremo o cuidado de selecção que os partidos devem ter ao escolher quem será o candidato, sob pena de não ter representação naquele círculo. Mas tem uma desadequada desvantagem que seria mais preocupante para nossa emergente democracia tem a ver com o facto deste sistema, em regra, excluir os partidos mais pequenos do parlamento, o que levaria a um bipartidarismo puro, o que não é de saudar, nem sequer defendo. Outra questão, quanto mim, igualmente preocupante prende-se com os custos da democracia. Temos que convir que a democracia e a consolidação de um Estado de Direito tem um preço, que não é nada barato. Mas que vale a pena, porque a médio e longo prazos se traduz num investimento. Uma sociedade estável, em que os órgãos de soberania funcionam regularmente e em que a certeza e segurança jurídicas são uma realidade, é uma sociedade saudável, que estimula a economia e o desenvolvimento, que é o que nós precisamos.

Pedro Romão, Estudante de Direito da Universidade Católica Portuguesa e Membro da Associação Justiça, Paz e Democracia

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