sexta-feira, fevereiro 11, 2005

2005 O ANO DE MEUS RECEIOS

1.ª Parte
Em programas radiofónicos, noticiários e magazines televisivos era quase diária a contagem decrescente do ano, indicando o pouco tempo que ainda restava de 2004. Nas ruas a agitação se fazia, nas lojas se via a concorrência: cada uma expunha os brinquedos mais raros, os presépios mais sonantes, etc. Mesmo no mercado paralelo, os produtos que compõem a cesta básica passaram a ser mais procurados. Enquanto os preços subiam, o cansaço aumentava. É sempre assim, sempre que se aproxima a quadra festiva é a mesma azáfama de todos os anos.
Mas desta vez era diferente. Afinal, 2004 não foi só mais um ano, foi também o segundo ano sem guerra. Acontecimentos houve, de vária ordem, que não se devem ignorar, quer queiramos quer não. Enquanto o mundo olhava admirado, nós os angolanos, nos alegramos com as vitórias contundentes do povo adquiridas nas pistas internacionais de atletismo paralímpico, através do recordista José Armando Sayovo, portador de deficiência visual. Confirmava-se uma vez mais que “as mãos que mendigam podem também trabalhar” e, no nosso caso, vencer! A nível de Benguela registou-se, embora despercebido, um estágio intensivo de locutores noticiaristas em mais uma tentativa de abertura da Rádio Ecclesia. Mas não é tudo. As obras da ponte sobre o rio Cavaco parecem agradar os cidadãos, que no entanto pressionam os políticos para a sua conclusão brevemente. O Governo de Benguela pôs à disposição o site www.angoladigital.net. Músicos, intelectuais, artistas e outros juntaram-se naquilo que é ao momento a Campanha de solidariedade social mais mediatizada: o Clube de Amigos das Casas Lares do Cuito.
A marcação da data das eleições para 2006, pelo presidente da república, depois de sucessivos adiamentos, veio dar sentido à postura de campanha que os partidos políticos vêm assumindo, tanto a situação como a oposição. Saltaram à vista os congressos de dois gigantes da oposição: a União Nacional para a Independência Total de Angola (UNITA) bem como a Frente Nacional para a Libertação de Angola (FNLA) ultrapassaram os conflitos internos, abrindo-se à mediação externa, e assumiram a reunificação. Pequenos partidos seguem o exemplo, alguns mais eficientes do que outros.
E como a vida não é um mar de rosas, o país encheu-se de vergonha e repulsa face ao assassinato de Mfulupinga Landu Victor, o então presidente do PDP-ANA, ocorrido em Março à porta da sede do partido, quando à noitinha subia na sua viatura. De si já chocante o assassinato de um líder político, indignou mais a atitude da Polícia Nacional que não apenas se precipitou a avançar dados para afastar a hipótese de um abate político, como até aqui não esclareceu o caso. A ONG britânica Global Witness voltou à ribalta com denúncias sobre o “Angolagate”, caso de corrupção que envolve o Governo angolano e o milionário Francês suposto traficante de armas, Pierre Falcone (Pedro Falcão, como uns lhe chamaram). Habituados aos desmentidos pontuais do Governo através da imprensa, sem que se processem os “difamadores”, muitos angolanos cedo ignoraram informações sobre elevados milhões de dólares em contas secretas de José Eduardo dos Santos, no estrangeiro. Já, as casas de jogos de sorte, vulgo “kixikila”, espalhadas pelo país prometendo premiar 5 mil dólares a quem investisse USD 100, empobreceram ainda mais o pacato cidadão que não viu nem o prémio nem os valores investidos de volta. Mais de três parturientes optaram pelo suicídio, atirando-se do 5.º andar do edifício duma das maternidades de Luanda, devido aos maus-tratos naquela unidade hospitalar, apontada como a mais alta de África. Já a fechar, marcaram as notícias veiculadas pela imprensa privada, denunciando a compra pelo Tribunal Supremo de duas viaturas blindadas, por aproximadamente milhão e meio de dólares americanos.
Vários aspectos positivos e negativos, obviamente, marcaram o ano, uns mais salientes que outros. Vale aqui enaltecer a atitude do povo que desta vez decidiu não esperar pela burocracia governamental para atribuir o estatuto de herói a José Sayovo, ele que trouxe ao país várias medalhas, títulos e muito orgulho. Em Benguela (ainda não ouvi de outro sítio), os mototaxistas, vulgo Kupapatas, foram baptizados de Sayovo. Quando começou, apenas as motorizadas de marca Delop eram “Sayovos”, uma comparação à força e velocidade do nosso recordista. “Sayovo” não é quem vai ao volante, mas quem é levado”, defendiam-se os mototaxistas pondo-se na condição de guia. Decerto vai levar tempo a metamorfose de kupapatas para “Sayovo”, mas é um dado adquirido. As Yamaha 50 da antiga Lusolanda são “Agostinho Neto”, enquanto as modernas são “Sayovo”.
2.ª Parte
A agitação social de que me referi no primeiro parágrafo sentiu-se também nas estradas. Inúmeros acidentes envolvendo táxis, motorizadas, e autocarros aconteceram nas vias Lobito-Benguela e Lobito-Luanda, resultando em vários feridos e danos materiais consideráveis. Triste, muito triste, a morte massiva de homens e mulheres, agora nessa fase de reconstrução nacional em que cada um deve juntar seu tijolo na obra da pátria. Muitos se recusam a compreender ou pelo menos aceitar a fatalidade, encarando-a como um castigo bíblico não merecido. Os cristãos encaram a morte como um caminho para junto de Deus, já que somos passageiros e não sobrará pedra sobre pedra na face da terra. Os supersticiosos julgam bastante perigoso viajar a partir de Agosto. Outros ainda defendem que as mortes massivas são naturais e continuarão a acontecer, uma vez que a guerra terminou e, tal como a flor morre para dar lugar ao fruto, a mortalidade fertiliza a natalidade. Eu cá já não sei por onde seguir, só sei que a vida segue sem parar.
Eu vi 2005 nascer no céu e nos olhares dos kotas e jovens. Enquanto filmava a festa de Reveillon do meu bairro, testemunhei emoções fortes de pessoas agastadas com as agruras de 2004. Tal como uma criança queixa-se à mãe chegada do serviço por tudo que lhe aconteceu durante o dia, o novo ano trazia o alento. Milhões de desejos foram feitos, muito saldo gasto nas mensagens e telefonemas de “Feliz Natal e Próspero Ano Novo”. À meia-noite, na hora dos Kandandus, uns saltavam por terem chegado lá, outros saltavam porque fervilhava no organismo o álcool. Tanta tem sido a cerveja nas festas que cedo desmancha a estética feminina: elas chegam elegantes, roupinhas justas… até “entornarem” muita cerveja e a barriga já não respeitar o tamanho da blusa, parecendo-se mais com a cabeça da cobra quando engole um sapo. Também tenho meus defeitos, mas acho que as damas devem contribuir para que sejam honradas.
Na hora do balanço, ainda na primeira quinzena de Fevereiro de 2005, reforçam-se os receios. Demasiado calor, muitos amigos meus doentes, quase todo o mundo a se queixar de cansaço, enfim. Os “Sayovos” tornaram-se mortais nos acidentes, só no Lobito e Catumbela morreram mais de três pessoas e outras ficaram feridas em menos de cinco acidentes. Por outro lado, nem mesmo o facto de a actual Miss Angola ser da Zona4, bairros do São João e Santa-Cruz – Lobito, influenciou para uma intervenção urgente no saneamento básico da área. Ali, só as chuvas deste fim-de-semana desalojaram pelo menos três famílias, uma criança faleceu, enquanto a queda de um poste deixa mais de 700 famílias privadas de energia eléctrica.
No campo da Educação, o Instituto Médio Normal de Educação (IMNE) do Lobito anunciou 179 vagas apenas para o período nocturno, devido à escassez de salas de aulas. A grande novidade vem da Universidade Agostinho Neto que coordenará, em paralelo com o CUB (Centro Universitário de Benguela), mais uma unidade acabada de surgir, com instalações próprias e sem propinas, no quadro do Projecto de Desenvolvimento do Ensino Superior em Benguela (Prodesb). Engenharia informática, economia, etc., são das especialidades para o ano lectivo 2005. Na sua experiência como universidade privada, o Prodesb fracassou em 2003, altura em que ministrou o ano zero nas antigas instalações da Alliance Française de Benguela, praticando a propina mensal de USD 30.
Vem aí o terceiro aniversário do fim definitivo da guerra em Angola. O país se abre aos novos desafios, os governantes aprendem a dirigir em democracia, os populares aprendem a ser cidadãos activos e conscientes. É o natural processo em situações de cessar-fogo irreversível. Muita coisa estragou-se, a guerra destruiu alguns dos aspectos mais sagrados da nossa cultura, mas “o povo bantu é um reconciliador nato”, como disse um historiador. E temos todos que juntar os esforços – cada qual a seu jeito, com o que sabe e pode – e aproveitar o passado como lição para o desenvolvimento do país. Ser cidadão não é sentar e só criticar, é sobretudo contribuir com ideias e acções construtivas para o progresso de todos.
Meus receios são muitos, tão incontáveis como minhas alegrias pelas conquistas da nação, com o governo na gestão do Estado. Mas, como cidadão e observador atento, tenho receio que muito de bom oferecido ou prometido hoje seja apenas para “comprar” o voto do povo; tenho receio que muitos angolanos ainda se matarão na época da campanha eleitoral, fruto da intolerância muitas vezes manipulada por líderes políticos; receio que volte a acontecer a suposta cobrança de mil dólares para o ingresso na Universidade pública; receio que leis exigindo menos de catorze anos para o ingresso ao ensino médio sejam um insulto à reconciliação nacional, já que a tropa impediu muitos jovens de continuar os estudos; tenho receio, racismo à parte, que para se trabalhar nos bancos ainda os critérios de admissão continuem “inconfessos” e preconceituosos; receio que fora das cidades se firam alguns direitos como a livre expressão e opção política; tenho receios de que um congolês democrático seja oficialmente mais angolano que eu, enquanto o bilhete de identidade informatizado levar mais de um ano a ser tratado; receio que ainda continue por muito mais tempo a desvalorização do jornalismo como profissão, ao ponto de um país com 14 milhões de habitantes possuir apenas um Instituto Médio de Jornalismo; receio que os nossos ministros continuem sendo “servidos” quando deveriam ser “servidores públicos”; tenho receios que o cepticismo e a frustração dificultem ver as coisas boas feitas pelo governo, enquanto a transparência na gestão for “masturbação mental”.
Não sei se agradeço, se lhe parabenizo ou se peço desculpas pela paciência que teve ao ler esse longo texto. Foi a minha contribuição, em termos de opinião, e que pela sua natureza não pôde ser mais objectivo nem mais breve. Muito obrigado.

Gociante Patissa, Lobito (Activista de Educação Cívica e Direitos Humanos)

1 comentário:

Anónimo disse...

necessario verificar:)