sexta-feira, dezembro 08, 2006

ROBOTEIROS

Depois de uma ausência forçada, eis-nos de volta para partilharmos o dia-a-dia da nossa terra.
Durante o mês de Novembro andámos por Benguela, Lubango e Huambo. O regresso a esta última cidade, dez anos depois, foi emocionalmente forte e não estávamos preparados. Mas deu para rever amigos e lugares que marcaram a nossa história de vida pessoal nos anos em que sobrevivemos, graças a Deus, às investidas militares do Governo do MPLA e da UNITA, na cidade de Wambu Kalunga.... São outros quinhetos...
Como sugere o título desta crónica, a conversa hoje é sobre os nossos irmãos "Roboteiros", que sobrevivem e vão vivendo graças a sua força física e muita inépcia dos serviços do terminal de cargas do nosso aeroporto 4 de Fevereiro ( Ainda bem, porque seria difícil sobreviver e viver sem emprego e espaço para exercer legalmente a actividade de "Roboteiroa").
Mas que coisa é um "Roboteiro"? "Roboteiro" é o nome que se dá a pessoa que ajuda a transportar uma carga pesada, levando-a à cabeça ou entre o pescoço e os ombros ( no calumbebe ou capepe) segundo a capacidade física e a distância. O "Roboteiro" também ajuda a carregar e/ou a arrumar a carga das paletas ou contentor para o armazém ou camião... No Lubango, o "Roboteiro" é conhecido como "Tio António"! Será da música de Sam Ngwana? ( Tio António quando trabalhava nas obras d'uma plantação, que pertencia ao colono...). No Lobito e Benguela, é conhecido como ajudeiro. Noutros lugares, onde o respito pelas profissões ainda existe, é chamado de "Estivador".
O nome que se dá não está em causa. Entretanto, a forma como os vi trabalhar e fazer dinheiro no terminal de cargas do aeroporto 4 de Fevereiro deixa muito a desejar. Sem exagero, o cenário assemelha-se mais a um assalto e roubo do que a um trabalho honesto. Vejamos:
No último final de semana, o terminal de cargas estava podre de cargas, que nem se quer cabiam nos armazéns e não havia capacidade em meios rolantes para transpotar tanta mercadoria. Resultado: a mercadoria chegou a atinger a placa. Aliás, compreende-se perfeitamente, não estivessemos em Dezembro e num país que ainda vive de importações até de capim para cobrir "Ondjangos". São outros quinhetos...
Desculpem-nos a divagação!!!
Bom, voltemos ao que interessa. Como o processo da alfândega ainda é muito burrocrático, aliás como o são quase todos públicos ou público - privados. Menos mal que a moda dos televisores e das parabólicas nos locais de serviço para ver as novelas da Globo e da Record ainda não chegou a alfândega. Ainda assim, se por azar a tua mercadoria estiver na placa para tira-la de lá até ao caminhão ou carrinha tens poucas opções: pagar a fortuna que eles pedem ou continuares a espera e pagares o frete do camião que também cobra por hora. É preciso lembrar que estamos em época de chuva e pode chover estragando a mercadoria. Se te despachas e pagas, eles vão fazendo o trabalho ao seu rítmo sem poderes reclamar. Caso o faças, eles podem parar sem mais nem menos já que a procura dos seus serviços é incomensurável. Passado esse teste, espera-te o trânsito, que por essa altura do ano e com as obras de ocasião, sabe Deus!!!...
Lá conseguimos uma boa negociação. Passadas algumas horas, tinhamos a mercadoria no camião e começava outro teste de paciência: aguentar e aturar o trânsito... Que são outros quinhetos.
Lembrei-me dos meus tempos de menino no Lobito, onde o preço do ajudeiro variava segundo o estatuto ou apresentação do cliente.
Fica um conselho: se decidires trazer mercadoria ou carga via aeroporto 4 de Fevereiro, por essa altura do ano, prepara o bolso e o coração, porque só pelos "Roboteiros" e o camião fretado podes pagar metade ou mesmo quase o preço de compra da mercadoria.
Até breve!!!
Upindi Pacatolo

domingo, outubro 29, 2006

DIZEM AS MÁS LÍNGUAS

Quero partilhar convosco uma inquietação da nossa operadora móvel UNITEL. Acontece que pela segunda vez, num espaço de quinze dias, ficamos com sinal fraco para não dizer sem sinal de telefone. Para conseguir-se uma ligação na mesma rede é preciso um exercício de paciência e persistência.

Há quase duas semanas encontrava-me no Namibe e vi-me privado do sinal telefónico. Imaginem meus amigos e minhas amigas alguém que depende do telemóvel para trabalhar e vir-se de repente privado desse precioso bem, sem mais nem menos. O mais aborrecido é que ninguém diz absolutamente nada. Falha técnica ou de sinal... Nada de nadica!!! E o pessoal lá vai tentando até conseguir uma ligação que por sorte não cai no número errado...

Encontrando-me em Benguela, volta a acontecer a mesma situação. De novo vejo-me aflito para trabalhar já que dependo dos contactos telefónicos. E mais uma vez, ninguém diz nada.

Como me sinto em casa, ganhei coragem e comecei a comentar o facto com pessoas amigas. Acreditem ou não, mas as respostas foram unânimes: está em Benguela algum manda chuva! Isso aqui é sempre assim. Quando vem um mandão de Luanda o sinal da UNITEL fica impossível.

É difícil acreditar nessas coincidências. Mas que as más línguas as vezes dizem a verdade ,lá isso dizem. Ou então será falsa a força do mujimbo (boato/notícia oficiosa)???!!!

Quem por cá anda ou já andou sabe bem o quanto custa caro não dar ouvidos aos mujimbos ou às más línguas. Pensando bem, na altura em que falhou o sinal no Namibe estava por lá uma delegação de manda - chuvas vinda de Luanda.

Coincidência ou não, alguma coisa está errada. Basta pensar que quando não há delegações de manda - chuvas o sinal não apresenta problemas. Então que se passa???!!!

Upindi Pacatolo

sexta-feira, outubro 27, 2006

NAS ESTRADAS DE ANGOLA

De volta à Luanda, a cidade da Kianda e da confusão. Vim a fugir com medo de ver essa nossa página bloqueiada. Mas para nossa satisfação concederam-nos mais uma oportunidade. Os novos compromissos não nos permitem manter uma presença regular nem na net, nem na blogsfera. Ainda bem! Eu cá não me queixo, porque podia ser bem pior.
Em três meses e qualquer coisa de Angola já viajei mais do que tinha feito na minha curta vida. Nem mesmo os anos de Portugal me proporcionaram tamanhas oportunidades. Hoje quero partilhar convosco o sofrimento de muitos angolanos que fazem das viagens por terra de uma cidade a outra o seu sustento e dos seus. É uma verdadeira odisseia. É uma tarefa herculiana. Mas lá eles vão conseguindo! Como? Só Deus sabe. O pior de tudo é que as opções são bastante reduzidas.
Tive oportunidade de viajar por terra de Luanda ao Lobito, como já referi em apontamentos anteriores. Confesso: sempre que repito a odisseia, vou-me surpreendendo com o avanço das obras daquilo que seria a reconstrução da estrada. Digo seria porque as obras em muitos troços não passam de um autêntico tapa - buracos. Espero estar enganado e que se trate apenas de fase pré-preliminar dos trabalhos. De contrário, é caso para dizer cuidado com a brincadeira e atenção aos senhores da fiscalização das obras públicas... Mas dá para ver o Morro do Shingo no Sumbe...
O meu cepticismo aumenta quando fazemos o percurso Luanda - Ndalatando. Aqui, sim! Com o agravante de ter que se usar uma picada depois do Zenza do Itombe, porque o percurso via Morro do Binda é um autêntico Deus nos acuda! Com as chuvas, não quero imaginar como deve ser duro viajar por essa via até Malange ou às Lundas. Mas os angolanos são de uma paciência e criatividade únicas, pesa embora seja abusada e pisada todos os dias. São outros quinhentos!
Nesses lados o estado das obras é encorajador porque há reposição de asfalto e pontes, mas a qualidade do tapete deixa muito a desejar. Aliás não dá para exigir muito porque a lógica aqui é fazer qualquer coisa que dure um ou dois anos. Asfalto doradouro pode ser subversão já que levará muitas pessoas ao desemprego porque acabam-se as justificações para obras nas estradas... Parece mentira né???!!!
Andando um pouco mais por aquela via encontram-se sinais evidentes de trabalho de tapa - buracos. Lá onde o asfalto do "coló" sobreviveu às investidas da guerra, da natureza e do tempo vão-se tapando os buracos que existem! O mais caricato é vermos que a terraplanagem dá sinais de auto-estradas. Mas quando apanhámos pedaços de estradas recém-asfaltadas vemo-las a "emagrecerem". Se alguém está a espera de encontrar auto-estradas nacionais por essas bandas "desengane-se"...
Mudando de rota, viajámos do Lubango ao Namibe. Que maravilha! Ver a Serra da Leba! Isso ai não tem explicação possível. É de uma beleza indescritível! Só visto! De todas é a estrada mais bem apresentada, com um asfalto que indicia muito trabalho e algum tempo de reflexão. São obras feitas para a posteridade. O único senão é o seu tamanho... Mas quando comparadas com as outras não minto se afirmar que são as melhores do país. E está tudo dito.
Finalmente! Vamos satisfazer uma curiosidae. Quem tiver coragem que faça experiência e nos desminta! Analisemos o exemplo que se segue: viagem de Luanda à Benguela/Lobito de avião demora entre 45 minutos a1h! O que é super confortável. Mas se parar e tentar fazer as contas, rapidamente chega a conclusão que é mais rápido ir de autocarro e demorar entre 7h a 8h certas. Há dúvidas???!!!
Vejamos: quando o avião tem a previsão de sair às 7h da manhã o check-in é as 5h. Quem vive longe tem de levantar entre as 3h e as 4h! O Avião acaba por sair entra as 7h e as 8h e qualquer coisa, quando não sai duas horas depois ou é simplesmente cancelado!!! Chegados ao destino é outra espera para levantar a bagagem e as várias filas de identificação e revista. Corre-se o risco de chegar à casa entre as 12h e as 15h!!! A demora é ainda maior se o trajecto for de outra cidade qualquer para Luanda. Basta pensar que os aviões saiem de Luanda com a demora anterior e quando se chega ao aeroporto de Luanda a espera pela bagagem é de cortar a respiração!!! Isso ainda quando o tapete rolante funciona, porque se faltar a luz ou estiver avariado, então...!!!
Quem sai de autocarro: parte as 6h e pode chegar na paragem 5 minutos antes. Por volta das 13h ou 14h e qualquer coisa, seguramente está em casa no Lobito ou em Benguela... Parece anedota né???!!! Está lançado o desafio é só experimentar...
Se tiver carro pessoal do tipo land cruiser ou prado, então é mil vezes melhor, não obstante o cansaço. Aliás é o que faz o pessoal do Lubando quando quer ir ao Namibe...
Até Breve!!!
Upindi Pacatolo

sexta-feira, setembro 22, 2006

ANGOLA EM (IN)MOVIMENTO 1

Nas últimas três semanas voltamos a percorrer o país por terra para usar as "novas" estradas, obra dos chineses. Desta feita, partimos de Luanda em direcção a Ndalatando, província do Kwanza Norte. As imagens do programa "Angola em Movimento" dão-nos a ver as boas estradas que estão a ser reabilitadas e construídas pelos chineses e pela Becom (Brigada de Construção Civil da Casa Militar, cujo chefe é também o responsável da Gabinete de Reconstrução Nacioanl). Animados por aquelas imagens, é difícil resistir à tentação de viajar por terra e ter a oportunidade de rever o morro do mbinda.
Para nossa alegria, logo que se começa a deixar o trânsito caótico de Luanda, a presença de chineses é bem visível na quantidade de "estaleiros" com indicações em chinês, de camiões basculantes a ser guiados por chineses e ... de muita poeira al longo das estradas... Tudo isso indica-nos que há algum trabalho a ser feito nessa via. Depois, deparámo-nos com boas estradas, onde é possível viajar a velocidade de 120km/h e para os mais corajosos a 160km/h. O grande risco é cruzar com um camião conduzido por um chinês, já que eles têm fama de ser maus condutores.
Embalados por esses pedaços de estrada, o viajante impaciente e entusiasmado é capaz de começar a fazer as contas do tempo que se leva até chegar a Ndalatando. Mas desengane-se porque ao sair do Nzenza do Itombe entra-se por desvio de terra batida que leva mais ou menos três ou quatro horas a ser percorrido, a uma velocidade que vai desde os 20km/h a 60km/h. Tudo isso é possível porque São Pedro fechou as torneiras. Mas se por um azar ele decide regar os campos adeus picada e conforto e bem vindo o calvário do Mbinda.
Quem tem o azar de sair de Ndalatando pelo Mbinda leva 3 a 5 horas para chegar ao Dondo. O curioso das partes de estrada asfaltadas é deparar-se com pedaços por asfaltar. Quando se tem a sorte de dar boleia a um habitante local ou agente da ordem pública e pergunta-se-lhe sobre aqueles pedaços por asfaltar ou pela ausência de trabalhos nalguns lugares, a resposta pronta é desconcertante: "esse pedaço é da responsabilidade da Becom. Os trabalhos pararam antes de começar porque a máquina avariou pelo caminho. Estão a espera da peça para fazer trabalhar a máquina". Ao perguntarmos quem o responsável da Becom. A resposta sai com dificuldade: O chefe da casa civil, o mesmo que coordena o gabinete de reconstrução nacional que controla até os chineses".
O curioso é saber que as obras de reconstrução das estradas avançam a bom ritmo. Mas quem quer ver e observar a qualidade do asfalto que está a ser colocado pergunta-se: isto é para durar quantos dias? Faço fé que aquilo que os meus viram seja apenas uma primeira camada de alcatrão, porque se for a definitiva, é caso para dizer: onde não funciona a fiscalização das obras que se fazem até a eficiência chinesa gera inificiência e delapida o erário público.
Até lá que alguém nos ajude e que Angola continue em movimento!!!!

Upindi Pacatolo

NÃO LEVE MOCHILAS QUANDO É 11 DE SETEMBRO

Luanda, 11/09/06, residência da Embaixadora dos Estados Unidos da América em Angola, Cynthia Efird. Mais de vinte pessoas aguardavam sentadas pela cerimónia oficial de assinatura dos acordos de financiamento de pequenos projectos de 8 ONGs nacionais, orçados em USD 140 mil. Estavam todos, entre beneficiários, pessoal do protocolo e jornalistas, menos a anfitriã, que levava mais de meia hora de atraso. E quando não se sabe onde está a diplomata, difícil ainda é saber quanto tempo mais resta esperar.

O vazio ainda continuava a ocupar o lugar da representante de Jorge Bush em Angola, para a impaciência dos jornalistas encarregues de cobrir o acto. Já os beneficiários olhavam com algum nervosismo aos termos de referência sobre a mesa – que assinariam em breve aos olhos da imprensa e do “diplomaticamente recomendável”, sem que tivessem antes a oportunidade de analisá-los. As comidas e bebidas prontas a servir nos quatro cantos do quintal emprestavam ao ambiente um cenário de festa. Ainda assim, de repente, vêm-me à mente as palavras de uma amiga europeia. “Em casa da embaixadora americana, em 11 de Setembro?! Era o último lugar que eu queria estar!”. Na verdade, eu já não sabia se queria estar aí ou se era só mais um daqueles compromissos sociais inadiáveis.

Instantes antes da consumação da cerimónia, cada um dos representantes das Organizações financiadas recebe do protocolo, com surpresa, um envelope e a respectiva explicação em tom baixo: “gostaríamos que voltasse às dezanove para ter um contacto com o Assistente da Secretaria de Estado para a Cidadania, Direitos Humanos e Trabalho; está de visita em Angola e queria ter uma conversa breve com as ONGs”. Por volta das dezassete a embaixadora e o Assistente se despedem dos convidados num até já e “visitarei os vossos projectos!”, e desaparecem por uma das portas da misteriosa residência.

Se para alguns não fazia sentido regressar dentro de 2 horas, quando até não estava programado, resolvemos, o meu colega e eu, comparecer – mesmo que não seja em trajo formal, como recomendado. Usamos meia hora de atraso como consolo. Quem trabalha/vive nisso de desenvolvimento com a sociedade civil não tem “horas nem agendas” de reunir, o que se resolve muitas vezes com uma mochila e/ou com o hábito de estar preparado para tudo e a qualquer hora. Por falar em mochilas, amo-as há mais de vinte anos, minha fiel companhia, e ainda hoje não vejo nada mais prático a usar como carteira ou como “escritório móvel”!

Na portaria exibimos os convites do envelope e entramos. Era tudo, menos o anunciado. O quintal estava em festa, literalmente cheio e tão “barulhento” – com todo o mundo a falar – como as nossas praças (mercados informais). Única diferença: ali não se anunciavam preços ou produtos e o inglês substituía o Umbundu ao lado do português. Pela primeira vez na vida, éramos uma ilha rodeada de figuras públicas por todos os lados: políticos, sociedade civil, diplomatas, jornalistas, etc. De repente se tornou tão simples apertar a mão a qualquer pessoa à Embaixadora, ao presidente da Unita, etc., (como nos sonhos), entre nacionais e “expats”.

O assunto “Angola, catorze anos sem eleições” era tentação sempre presente nas conversas. Afinal Os políticos desfilavam fazendo cara bonita, tal como prostitutas caçando clientes. Pouco antes das 20:15, quando: “Desculpa, posso falar consigo um minuto?”, dirigiu-se a mim um senhor. “Acho que sim!”, respondi-lhe enquanto tentava descobrir o motivo. “Epa, estás a ver, aqui vem muita gente e a mochila…” Entendi muito antes do homem terminar o sermão e facilitei: “estás a propor que lhe entregue a minha mochila?” Enquanto se engasgava esse angolano, o mesmo senhor dos envelopes – esquecido de ter subjectivamente convidado para um encontro e não para uma festa, ainda por cima sem música – vem e reforça o que para mim já estava claro. Lá entreguei a mochila ao segurança, não vá eu ser acusado de transportar bombas para importunar a pobre embaixadora e os demais ali presentes, que disfarçavam o medo do terrorismo nas bonitas roupas e nos sorrisos mecânicos que a diplomacia ensina.

É verdade! As coisas chegaram a tal ponto que, ao que parece, já não dá para confiar em ninguém, até mesmo nos guardas da nossa residência. E se você for um dia conviver em ambiente americano e quiser evitar desconfortos, o melhor é não levar a sua amada mochila. Porque tem outro significado quando é 11 de Setembro. Conselho de amigo!

Por: Gociante Patissa, Lobito.

sexta-feira, agosto 25, 2006

ANGOLA EM (IN)MOVIMENTO

Quem tem a sorte ou oportunidade de regressar ou passar por Angola, vindo do strange, uma das coisas de que seguramente tem saudades é ver a nossa TPA. Esta, no tempo da outra senhor, significava Televisão Popular de Angola. Com a abertura do país à democratização passou a significar Televisão Pública de Angola. Numa altura em que o lema era o "P" cai, com muito sacrifício, conseguiu manter o "P" de "Popular", embora significando "Público". Na verdade, não é fácil despir-se de "hábitos populares" simplesmente porque a moda é democratizar-se.

Hoje, com a proliferação das parabólicas ou DSTV, como são conhecidas aqui, "o tempo da TPA já era", como dizem os Kalibrados. Por isso, já é hábito traduzir-se TPA por "Tenha Paciência Amigo". Nessa situação, a saudade transforma-se num ápice em desilusão. Mas antes que tal aconteça, dentre outros, há um programa que chama atenção ao recém - chegado "Angola em Movimento".

"Angola em Movimento" é um programa cujo figurino lembra o saudoso "Nação Coragem". A diferença é que tenta vender um cartão postal de uma Angola em Movimento; com grandes obras públicas (fruto do empréstimo chinês, da alta do preço do petróleo e do fim do conflito armado), sobretudo no sector das vias de comunicação, escolas e hospitais ou centros de saúde... Em fim, o programa está concebido para mostrar aquilo que todos esperam ansiosamente: estradas em reabilitação ou construção, escolas e hospitais a serem contruídos e inaugurados... As imagens são tão convincentes que quem por cá passa, vindo do strange, ganha vontade de empreender uma viagem por terra para ver como o país (i)move-se.
Não querindo fugir à regra, decidimos fazer uma viagem por terra, de Luanda ao Lobito. Segundo anunciaram, essa é a via que estará totalmente reabilitada até Dezembro de 2007. Então mais um motivo para ver como (não)vão as obras de reabilitação dessa via. Mas para minha (des)consoloção nem obra, nem máquinas, nem chineses vi durante as 8 horas de viagem. Como era domingo, tentei acreditar que os trabalhadores tinham repouso ao fim de semana.
Mas então as máquinas? Os sinais de algum trabalho? E os chineses que trabalhavam até durante a noite? Para não ser acusado de nada, decidi calar-me e repetir a proeza, no meu regresso e num dia de semana.
Então, meti-me à caminho do Lobito a Luanda, numa segunda - feira. Entretanto o filme repetiu-se e chinês apenas vi 5, na cidade do Sumbe. Seguramente estariam em repouso, enquanto outros (des)trabalhavam. Mentira. Nem um, nem dois... Mas as obras (não)avançam e até Dezembro de 2007 teremos a estrada toda reabilitada... É a Angola em (in)Movimento.
Quem tiver a ilusão de andar por terra para ver como vão as obras de reconstrução das estradas, por favor, desengane-se e prepare-se para ver Angola em (in)Movimento. Mais do que isso, prepare bem o coração e a paciência porque os buracos continuam a conviver com restos de alcatrão lá onde ainda existe... noutros lugares só mesmo poeira e buracos.
Imagino quando a chuva chegar!!! Nem quero pensar nas outras vias com menos publicidade e campanha!!! Talvez o anúncio da data do registo eleitoral pode acelerar os trabalhos que já começaram!!!!!
Até breve!!!!
Upindi Pacatolo

terça-feira, agosto 15, 2006

POR QUANTAS VEZES MAIS...???

Uma voz, a habitual para ser sincero, lançava ao vento palavras de consolo, equilibrando-se entre o repouso agora e um espaço melhor num futuro distantíssimo, enigmático.
“Não sei quantas vezes mais terei ainda de voltar aqui, mas a chatice de cá estar é sempre a mesma”, desabafei com um amigo. Já fora, no fim de tudo, uma senhora em trajo preto desabafava impotente com uma suposta amiga (ambas para mim eram desconhecidas, sendo a viatura e a viagem a única coisa em comum entre nós): “uma gaja nunca vem aqui para relaxar… é sempre com problemas. Possas!”
Voltará a sorrir tão cedo a pobre mulher? Talvez (espero que sim!), mas o rosto transparecia abalo, com um suspiro sentido, enquanto tentava sentar-se no pára-choques traseiro empoeirado da viatura, que não sabia a quem pertencia nem o sujeito que a conduziria. Nestes momentos, qualquer carro dá, não há lugar para formalidades. No fundo todo o mundo vai ao mesmo sítio e volta já, já, à base – excepto, claro, a pessoa do dia.
E os primeiros instantes no destino então são os mais ingratos, sobretudo quando no quintal – cujo branco não é sinónimo de uma paz sincera, racional, mas apenas de conformismo, face a uma derrota sem recurso impeditivo – a leitura daquele texto de costume caminha para as últimas linhas.

Como sempre, já sei o que vem a seguir. Mas me retiro, e é agora, para não olhar de frente, pelo menos desta vez, o passo mais concreto de toda a cerimónia (aquele momento que põe de parte toda a natureza de aparências que normalmente norteiam o socialmente recomendável em termos de apresentação individual e de discursos em relação ao personagem único; o momento pragmático do “terra p’ra terra”). Dou dois passos à retaguarda devagarinho para não dar nas vistas (péssimo momento para um eventual show-off!). Uma obra de arte castanha, que atende pelo nome de caixa, capitaliza as atenções, disputando nalguns casos com os rostos húmidos daqueles directamente mais atingidos (oh, e há sempre!).
O filme é repetido e o impacto também. Enquanto deixo o círculo em busca de forças, sinto as pernas trémulas, a cabeça doendo… Estão muito frescas as imagens de uma conversa de “amizade em trabalho” que travamos na única pensão do Cubal, há um mês. Tudo agora passa para a classe de um passado sem interacção, juntamente com os seis anos da relação de colegas de “profissão”. É mais uma repetição da triste constante: a vida um dia nos junta e, logo, logo, nos separa…!
O homem da bata branca, de livro de capa azul na mão, com os olhos por detrás dos óculos, continuava a apregoar o Senhor e o descanso eterno, enquanto amigos e familiares se rendiam em segurar as poucas pás disponíveis. E cada pausa do seu discurso corajoso era preenchida por um barulho agudo, num compasso que se tornou perfeito face à peculiar frequência ao longo dos anos. O buraco tinha de ser tapado, o homem ficaria mesmo!
A poucos passos, um atraente vaso na cabeceira de uma campa de humilde aparência salta à vista. É natural ou artificial? Agacho-me, arranco uma folhinha e o verde húmido entre o meu polegar e indicador, ao esmagá-la, diz tudo. De um verde nutrido e uma flor amarela sorridente, foi trazida para cá no meio de lágrimas e choros de uma família que depositava para sempre mais um ente querido, como essa, hoje, agora. Não há dúvidas. Ela, a flor, sem me dizer há quanto tempo não recebia irrigação, só mostrou que tem conseguido sobreviver, ao lado de um vasto universo de flores artificiais em vasos com água.
Por mais voltas que dermos vamos lá sempre ter… no cemitério. Como é chato, principalmente quando cada visita representa sempre a partida de alguém conhecido e/ou chegado, para nunca mais se voltar a ter novidades?! Como doem as habituais irrespondíveis perguntas lançadas aos choros por órfãos, viúvos/as e familiares em geral? Como é ingrato sabermos que o fim da vida dessa pessoa é o início de um problema para muitos, o de dar seguimento ao seu projecto de vida? O hoje lá se vai, mas quem sabe o amanhã? Ou melhor, é coisa de a pessoa se perguntar: por quantas vezes mais terei de voltar ao cemitério?
Por: Gociante Patissa, em memória de Gabriel Agostinho, o “Gaby” da Okutiuka, Lobito, 12/08/2006

sexta-feira, agosto 04, 2006

GESTOS DE ÁFRICA

Há um ano, tive a oportunidade de conhecer as terras de MANDELA. Não sou propriamente a melhor pessoa para falar da África do Sul. Além de ter permanecido por lá noventa dias, embora não como turista, é pouco tempo para perceber muitas dinâmicas. Acresce-se o facto de ser um grande admirador dos Sul-africanos e apaixonado pelo milagre da sua transição para a democracia. O exemplo de coragem e a capacidade de aceitação e superação deles bate fundo e forte no meu pequeno coração.
Mas hoje quero partilhar convosco a beleza e expressividade de um gesto. Passando pelas ruas de JB, Pretória, Petermarsberg(?) ou Durban há um gesto feito pelas mulheres que chama atenção aos observadores atentos. Uma mulher que se preza, quando sauda alguém que não conhece ou então com quem não tem muita intimidade não dá dois pares de beijos. Antes, estende-lhe a mão direita enquanto a mão esquerda segura, ligeiramente, o pulso da mão direita. Até aqui, nada de especial. A novidade, acessível à pessoas atentas, está no movimento que faz com a perna direita. Esta fica, simultaneamente, um pouco atrás e ligeiramente flectida. É um gesto muito rápido.
Intrigado com a situação e porque a curiosidade era muita, perguntei a uma amiga porque faziam aquilo. É sinal de respeito! A resposta foi, no mínimo surpreendente. Entei voltei à carga: mas vocês não fazem isso com toda gente? É verdade! Quando as pessoas já são da nossa intimidade nós vamos deixando de parte algumas regras de cortesia ou algumas formalidades sociais. É tão simples quanto isso. A questão não é fazer com uns e outros não, mas sim adaptar as regras sociais ao contexto. Fiquei estupefacto e sem palavras...
O " problema" voltou à baila quando fui ao Moxico, em meiados de Julho de 2006. No final de semana, fomos convidados a almoçar em casa do amigo do meu colega. Para meu espanto, a esposa do amigo repetiu o mesmo gesto e fiquei apreensivo. Para completar a confusão, quando fomos convidados a sentar à mesa, ela ofereceu-nos uma bacia com água morna para lavar as mãos e uma toalha. O dono de casa começou a comer com as mãos e nós seguimos o gesto. Foi, simplesmente, divino. Nunca vi coisa igual...
Para complicar o quadro, perguntei ao nosso amigo se a esposa era sul-africana. Ele respondeu-me que era do Bié! Na minha incredulidade, dirigi-me a ela em Umbundu e fui respondido à letra. Então, perguntei: donde é o amigo? Sou do Luena! Muita confusão em tão pouco tempo.
Uma vez no hotel, interroguei o meu colega sobre os gestos que tinha presenciado e contei-lhe a minha experiência da África do Sul. Ouviu-me, pacientemente, e disse: meu irmão a África está cheia de gestos e sinais comuns. Mudam os nomes, mas dizem a mesma coisa. O gesto da saudação também encontras na Zâmbia, Zimbabwe, Moçambique... Basta que a mulher seja educada num meio conservador e, uma vez adulta, tenha coragem de apresentar a sua educação.
E aquela de lavar as mãos com água morna e comer com as mãos, enquanto os talhares permanecem arrumados? É uma experiência que trouxemos da Zâmbia. Lá, as pessoas que se prezam, usem gravata ou não, mantêm esse gesto. Os talheres ficam arrumados à mesa, mas quase ninguém os usa.
Gostei da experiência e, sobretudo, da transnacionalidade dos gestos.
Até breve!!!
Upindi Pacatolo

terça-feira, agosto 01, 2006

COSTANGUEIRO II

Sentei pa descansar, quando apareceu um amigo completamente chateiado e aos berros. Tentei fingir que estava demasiado ocupado com os meus problemas, mas foi impossível. O meu amigo estava inconsolável. Foi assim que decidi falar com ele.
Então mano, qual é o problema? Tas a ver aquela via que sai da rotunda do zamba II e pessa pelo bairo azul? Yá tou a ver ( tive de fingir, porque não conheço Luanda, nem estou a ver..., talvez na imaginação, mas nem ai...). Apanhei ai o hiace pa ir ao trabalho, mas inventaram de fazer obra logo naquela estrada. Resultado: cortaram uma faixa da estrada e na que resta há muito engarrafamento. Pa variar, quando decidi ir à pé pa chegar ao salu antes de me marcarem falta, doutro lado da estrada as obras deram cabo de um cano de água e a rua ta toda "alagoada"( seria alagada se fosse apenas molhada, mas como formaram-se lagos...).
Para passar é preciso apanhar um costangueiro. Como havia muita gente apressada e poucos costangueiros, eles começaram a cobrar 100kz por cada travessia. Que absurdo! É o dobro do preço do taxi. Mas pronto né! Um gazo tem que bazar po salu e pronto, paga. Mas o pior tava pa chegar. Quando mesmo chegou a minha vez pa passar, epa quase a chegar no passeio o costangueiro começou a reclamar: Kota é muito bebucho, tem que dar 200kz, se não desce. Puto tas a gozar ou quê? Vou descer como? Então paga senão desce aqui mesmo!
Para meu azar: o puto fez-me descer! Com os sapatos e as claças entrei naquele alagoado e era uma vez: falta no salu, sapatos rebentados, e roupa molhada. Aquem devo pedir a responsabilidade pelos prejuízos?
Será que temos que fixar também o preço dos costangueiros pa travar a concorrência desleal ou
e preciso ter cuidado com os trabalhos nas estradas? Precisa-se, com urgência, recuperar a ética da responsabilização e fiscalização das obras públicas, porque no fim da linha é o pacato cidadão que paga a factura pesada.
Até breve!!!
Upindi Pacatolo

segunda-feira, julho 24, 2006

COSTANGUEIRO

Desta vez, escrevo a partir de Luanda, a »cidade da confusão». Encontro-me na também cidade da Kianda desde 05 de Julho. Já estive nas cidades do Lobito e Benguela e a imagem não foge muito da confusão de Luanda. Tive também a sorte de viajar ao Luena, onde fiquei 8 dias a trabalhar na preparação e realização de uma conferência sobre o papel das eleições na promoção da democracia e da reconciliação nacional. Em próximos apontamentos, espero poder falar dessas emoções e impressões de regressar à terra e viajar pelo leste.
Hoje quero partilhar convosco uma nova profissão criada pelos angolanos: "Costangueiro". Quando cheguei à casa, nas conversas com as minhas irmãs falaram-me de certo grupo de pessoas que só comem quando chove. Diante da minha indiferença, uma das minhas irmãs perguntou: « mano, sabes porquê eles só comem quando chove»? Do alto da minha sapiência respondi: « porque são agricultores e sem chuva têm dificuldades de regar os campos e conseguir alimento». Em uníssono, as minhas irmãs puseram-se a rir da tuguisse e ignorância do mano.
Refeitas da piada e parvoíce do mano, a mais velha pôs-se a explicar: « mano, eles só comem quando chove porque são costangueiros»! «Costa quê»?, returqui eu. «Costangueiro, mano»! «Explica lá isso bem»! Rematei. «Mano, conheços os candongueiros né»? «Ya conheço»! «Então candongueiros e costangueiros são dois meis de transportes. Enquanto o candongueiro te leva de carro, o costangueiro te leva nas costas; enquanto o candongueiro tem sempre clientes e trabalho, o costangueiro só trabalha quando chove, porque é quando as ruas e as estradas estão cheias de água e para as pessoas passarem têm de ser levadas às costas».
De regresso à Luanda e pelos lados de São Paulo deparei-me com um cenário desolador: em pleno cacimbo, isto é, quando não chove, as ruas estavam completamente alagadas e os costangueiros empregados. Então telefonei à minha irmã e disse-lhe: « mana, aqui em Luanda os costangueiros não dependem da chuva pa trabalhar. Há sempre clientes que precisam ser levados às costas para atravessar certas ruas, porque o asfalto e os canos de água não se entendem. Paga o pacato cidadão e o costangueiro ganha o seu pão». Até Dog Murras desconseguiu explicar e cantar essa verdade, já que ele só diz « nosso bairo é o mesmo... quando chove é sartar, se cair maka é teu»!!! E quando não chove? Porque precisamos de costangueiros?
Atenção: não sou contra aqueles que ganham digna e honestamente o seu pão! Mas essa de levar os outros às costas pa atravessar os lagos ou charcos ao longo das estradas e ruas não dá.
Até breve!!!!

Upindi Pacatolo

quinta-feira, abril 20, 2006

«HÁ QUATRO ANOS!!!E QUATRO ANOS DEPOIS???»

Há quatro anos…
Morreu Savimbi em combate, no Leste de Angola. Foi exibida pela Televisão Pública de Angola(TPA) a imagem do corpo de Jonas Savimbi cravado de balas, moscas e profanado. Para quem tinha dúvidas ou alguma esperança no regresso do líder ou numa reviravolta, tudo ficava claro. Era chegado o fim de uma odisseia começada em 1966 no leste de Angola.
Há quatro anos…
Nasceu um duplo desafio para o General Paulo Lukamba “Gato”: 1º parar as hostilidades e devolver a paz aos angolanos; 2º salvar a UNITA de um fim inglório e transformá-la num partido político capaz de abraçar a disputa político, sem recorrer a meios militares.
Há quatro anos…
O General “Gato” mostrou-se à altura do acontecimento e das circunstancias. Por um lado, suspendeu as hostilidades e entabulou negociações com as FAA, assinando-se um cessar fogo, que teria na assinatura do memorando de entendimento, em Luanda na casa mãe das leis, o seu ponto alto. Por outro lado, o General “Gato” começou a percorrer o longo e difícil caminho da unificação e transformação da UNITA. É um caminho que teve o seu ponto alto no congresso que elegeu o Sr. Samakuva como presidente da UNITA. A unidade da UNITA permanece difícil, com altos e baixos…
Quatro anos depois…
A paz é uma realidade inquestionável. O mérito do presidente da república, o engenheiro José Eduardo dos Santos, na conquista da paz militar é incontornável. Os frutos da paz são visíveis na livre circulação de pessoas e bens, na reabilitação das infra-estruturas, na estabilização macro-económica, na corrida de investidores estrangeiros…
Quatro anos depois…
A defesa e garantia dos direitos e liberdades fundamentais dos angolanos é feita de modo tímido ou insipiente. A igualdade perante a lei é uma miragem, para a maioria dos angolanos. A juventude rural e das periferias das grandes cidades continua condenada a um desemprego crónico, quando não está sub-empregada. Os salários da função pública permanecem aquém do custo de vida…
Quatro anos depois…
Continuamos a espera da normalização das instituições políticas do país. As eleições continuam no segredo dos deuses. A oposição e o partido no poder continuam com agendas desencontradas. As grandes questões nacionais ainda são monopólio e privilégio dos “iluminados” dos partidos, “grandes intérpretes” do pensar e sentir nacional. O investimento na educação e na saúde, que mais não são senão o investimento no Homem Angolano e no futuro do país, são uma miragem.
Quatro anos depois…
A UNITA ainda vive os seus dramas e o sonho de ser o maior partido da oposição. A FNLA continua abraços com a sua crise interna de liderança. Os outros todos não inspiram segurança enquanto alternativa ao governo do MPLA… Por esse andar, quando as eleições forem anunciadas, não é muito difícil prever que sirvam para confirmar o óbvio…
Quatro anos depois…
Consola-me saber que pesa sobre a nossa geração, gravemente privada de oportunidades, o desafio de trabalhar e lutar por uma democracia pluralista em Angola e não apenas eleitoral. Esse desafio já começou e temos de procurar pelas oportunidades já que elas tardam em aparecer ou manifestar-se de forma clara e transparente. Eu acredito na nossa geração…
Upindi Pacatolo

sexta-feira, abril 07, 2006

O "KAIRÓS*" DA UNITA

De regresso à terra, tive a oportunidade de voltar às nossas conversas com a avó Cambundu, aquem o peso da idade vai vergando. Desta feita, obriguei-a ir bem fundo da sua memória e resgatar de lá alguns dados e referências históricas que me ajudassem a compreender um fenómeno que me tem intrigado de algum tempo a esta parte: A "UMBUNDIZAÇÃO" DA UNITA.

A avó Cambundu olhou bem fundo para os meus olhos e pediu-me que a levasse ao quintal para sentar-se à sombra da mulembeira. No seu estilo maternal, convidou-me a sentar-se bem perto das suas cansadas pernas e, afagando a minha carapinha, como o fazia na minha infância vezes sem conta, constatou com surpresa que seu netinho estava a tornar-se num homem calvo!

Depois de muita hesitação, avó Cambundu começou a narrar a sua pesada e dura história. «Em 1961, quando começou a luta de libertação nacional estava a trabalhar nas roças no "nano"(1). Tinha ido lá atrás do teu avô que já lá estava faz três anos. Com os ataques dos nossos irmãos do catanga(2) e com a resposta dos brancos, nós tivemos de fugir e conseguimos chegar mais tarde na nossa aldeia de Etunda Mbulu. Meu filho quando chegamos na nossa aldeia a alegria voltou nos nossos rostos e a força para recomeçar a vida era maior, porque «v'ondjo v'ondjo, nangõ katulila mo omumã!»(3).

Meu filho, nesse ano, alguns familiares fugiram para muito longe e não conseguiram chegar na nossa aldeia. Mais tarde, quando as coisas ficaram calmas, eles voltaram lá nas roças do "nano" para ganhar a vida. Eles eram muito jovens e tinham medo de voltar a aldeia e serem apanhados pelos cipaios e levaram um castigo pesadíssimo ou serem levados de volta e perderem o pouco a que podiam ter direito.

Em 1974, quando as tropas da FNLA entraram nas zonas das roças começaram a correr e expulsar todos os trabalhadores das nossas terras. Alguns foram mesmo mortos. O povo teve medo que se voltasse a repetir o 1961, então quase todos saírem de lá e voltaram nas nossas aldeias. Perderam tudo, mas mesmo tudo o que tinham e nunca mais perdoaram os da FNLA.

Quando chegaram aqui nas nossas aldeias, começaram a ouvir falar da UNITA. Esses vinham dos Luchazes(4) e falavam a língua dos luchazes e a nossa, mas eram muito diferentes da FNLA porque não ameaçam e andavam sempre a falar boas coisas. Havia muitos deles que eram camponêses ou filhos do povo e nós conhecíamos muito bem. Eles aconselharam-nos a não desistir e continuar a lutar e a trabalhar a terra. Foi assim que o povo que estava cansado e triste, rapidamente, simpatizou com a UNITA.

Quando a UNITA foi corrida das cidades em 1975/76, muitos acompanharam a UNITA porque acreditavam que a guerra que vinha de cima é muito perigosa e os do "nano" matam tudo. Por isso, o melhor é fugir. Mas o pior ainda tava para acontecer, meu filho». O sol já se punha e a avó começou a sentir frio e pediu-me que a levasse para dentro. Frustrado, fiz-lhe a vontade e deixa-a deitada na sua cama. Finalmente, quando me dirigia para porta de saída, a avó chamou-me e perguntou se eu queria ouvir mais um bocadinho antes dela dormir. Eu disse-lhe que sim

Então avó Cambundu retomou a conversa, mas sem a sequência que estava a espera. « No ano da fome(5), houve kwata-kwata(6) nas nossas aldeias para ir de novo nas roças. Mas desta vez o povo fugiu para as matas e foi entregar-se na UNITA. Foi muita gente, mas muita muita gente mesmo. Cátê aqueles que foram apanhados muitos conseguiram fugir de lá e foram nas matas. Desta vez eles estavam dispostos a lutar e defender a suas aldeias e os seus velhos e crianças. E a guerra teve que durar muito tempo, porque era muito abuso. O teu avô, nesse tempo, dizia aos teus tios «kapeli-ko: ove watopa onambi ya nhõhõ vaenda layo»(7).

Nesse entretanto, avó Cambundu adormeceu e deixou-me com água na boca. Mas, prometo voltar mais cedo e aproveitar gravar algumas histórias da minha querida avó e tentar parlhar algumas delas convosco. Fica a ideia que há momentos históricos fortes marcados com erros da FNLA e do Governo do MPLA que ajudaram a UMBUNDIZAR a UNITA. Esses elementos não tiram mérito à capacidade de mobilização dos dirigentes desse partido.

Notas: * Kairós=tempo de graça; (1) Nano: equivale a norte; (2) Catanga: equivale a provenientes do Zaire;
(3) V'ondjo v'ondjo nangõ katulila mo omumã(literalmente= mais vale ter uma casa, ainda que não se coma nela o fígado). Em casa estamos sempre bem, mesmo quando não temos posses para comer do bom e do melhor.
(4)Luchazes: equivale a leste;(5) ano da fome: equivale a 1977/78; (6)kwata kwata: é a guerra do "apanha apanha" para levar os campoêses do sul para as roças do norte;
(7) Kapeli-ko: ove watopa, onambi ya nhõhõ vaenda layo(literalmente=Cuidado: se fores burro, tiram-te o direito de chorares e sepultares a tua mãe). Se não te acautelares, tiram-te a liberdade conquistada e não serás capaz de cuidar da tua mãe, dos teus e da tua terra; outros contarão a tua história, por isso, resiste!!!

Upindi Pacatolo

sexta-feira, fevereiro 24, 2006

AGORA É QUE VÃO APANHAR CAFÉ!!!

Há quatro anos, num belo domingo 24 de Fevereiro de 2002, encontrava-me numa das Igrejas do Lobito a meditar, momentos antes da Missa Dominical das 10h00. Nesse instante, entra uma senhora amiga, na casa dos seus 50 anos, toca-me no ombro esquerdo e diz « sekulu wafa, kalye wendi k'ondalatu! v'ukanoli o café k'imbo lyamale!» (1). Confesso que entendi o que disse, mas não compreendi e nem consegui fazer o devido enquadramento. Intrigado, tentei concentrar-me na missa que estava prestes a começar.
Quando terminou a missa, saí da Igreja e fiquei lá fora a conversar com amigos. Eis que aparece o nosso pároco que se junta ao grupo e participa da conversa. Dada a nossa proximidade, seguimos juntos para almoçar. Durante o almoço vieram-me as frases da senhora e disse-as ao padre, na esperança que ele me ajudasse a fazer o devido enquadramento. Para meu espanto, jovem da casa dos vinte anos, aquelas palavras tinham uma verdade histórica que eu desconhecia completamente.
No rescaldo da guerra imediatamente a seguir a Independência, entre os anos de 1976 a 1978, houve uma brutal escassez de alimentos e paralização dos campos de algodão e café do norte de Angola. Para fazer face a esse desafio, o governo de Angola reeditou a guerra do Kwata-Kwata (2) nas terras do planalto e sul de Angola (3) afim de obter trabalhadores agrícolas indispensáveis para revitalização da agricultura nas roças do norte.
Se com a independência, os camponêses do planalto e sul de Angola puderam sonhar com o fim do seu recrutamento forçado para aquelas roças, a sua reedição por um governo independente foi um golpe duríssimo na sua ilusória liberdade. O líder da UNITA, Jonas Savimbi, agastado com a fraqueza e quase exaustão das forças que conseguiram sobreviver à retira das cidades, em direcção as matas do leste (Jamba), onde se reorganizará a luta de resistência, aproveitará esse facto mais a presença dos cubanos para moblizar aqueles camponêses e relativos à sua causa. O aproveitamento político desse facto e o apelo à resistência a guerra do Kwata-Kwata e a invasão cubana atraiu para as matas muita gente farta da opressão e brutalidade das roças. Conta a história que foi assim que Savimbi conseguiu pôr fim a guerra do Kwata-Kwata. É bem conhecida a máxima Umbundu que Savimbi usava com frequência «ise okufa, etombo livala» (4).
Talvez isso explica, em parte, porque pessoas da minha geração naturais das zonas do planalto e sul de Angola tenham crescido em meios onde os adultos nutriam (e nutrem) uma grande admiração e respeito, quando não devoção, pelo mais velho (Savimbi), que consideravam seu libertador tanto da opressão colonial quanto da opressão do novo governo, malgrado todos os dizeres verdadeiros ou não das atrocidades do mais velho.
Mas para os nascidos depois da independência continua a existir muitas coisas difíceis de compreender, hoje, porque a história foi-lhes negada por muito tempo. Os que a viveram preferem calar, quando não a contam com muita amargura, sendo difícil distinguir o facto da sua recriação. Dessa forma aprendi mais um pouquinho da nossa difícil e complicada história política.

(1) Morreu o mais velho, agora ireis apanhar café em terras do norte como contratados;
(2) Guerra do Kwata-Kwata: literalmente, guerra do apanha-apanha. Foi desencadeada pelas autoridades coloniais para apanhar camponêses e enviá-los às roças, sobretudo do norte de Angola. As famosas levas de contratados Ovimbundu ou Bailundo;
(3) Planalto e Sul de Angola: pessoalmente, não gosto de usar essas expressões, mas servem para identificar o antigo corredor do Planalto de Benguela ou zonas de povoamento Ovimbundu; assim como, as zonas do norte, identificam as de povoamento Kimbundu mais Kikongo (roças do Uige);
(4) Prefiro antes a morte, do que a escravatura. É um forte apelo a resistência por justa causa: manter a dignidade e a honra do convento.Mas não se compreende plenamente sem a sua complementar: «na floresta, a árvore que não obedece ao vento quebra». Isto é, quando a resistência não é possível, a sabedoria aconselha obediência para sobreviver e contar a história.»

Upindi Pacatolo

quarta-feira, fevereiro 22, 2006

A CHANA DA VERGONHA!

Há quatro anos morria, nas chanas do Leste de Angola, Lucusse, Jonas Malheiro Savimbi. Para uns, morria o pai fundador da UNITA, líder histórico, carismático, controverso... Para outros, simplesmente, um criminoso de guerra, um sanguinário... enfim, um "Calvário Chamado Jonas"*. A par das lutas político-partidárias e das questões intestinais ou figadais, relacionadas com o nome e a pessoa de foi Jonas Malheiro Savimbi, quero reflectir sobre uma coincidência histórica ou não e de algum desagrado com a mídia televisiva, dependendo do ângulo de leitura do leitor.
A expressão que dá título a esta reflexão é do dr. Savimbi. Foi usada em Agosto ou Setembro de 1974, aquando da assinatura do acordo de cessar fogo entre o MPLA-Neto e o exército português, no Lucusse. Jonas Savimbi, nessa expressão, resume aquilo que para ele significou a "traição portuguesa".
Quando se dá o 25 de Abril, em Portugal, o MPLA encontrava-se dividido em três facções: Neto, Chipenda e Joaquim Pinto de Andrade. Chipenda era o comandante das forças do MPLA, na frente Leste. Uma vez em ruptura com o MPLA-Neto, significava que esta ala não tinha presença na frente leste. Mas para mostrar que o MPLA-Neto tinha presença no Leste de Angola, foi criado um cenário militar de guerrilha para acolher o dr.Agostinho Neto que vinha de helicópetero das forças armadas portuguesas para assinar o cessar fogo no interior de Angola. Devido a encenação e ao simbolismo que revestiu e revestirá para o MPLA-Neto, Jonas Savimbi chamou ao Lucusse "A CHANA DA VERGONHA", porque marcava "a primeira traição" de Portugal aos destinos do povo angolano.
No dia 22 de Fevereiro de 2002, Jonas Savimbi morre no Lucusse, aquela que há 28 anos era a "CHANA DA VERGONHA". Porque o seu fim se deu no Lucusse e não noutro lugar? É mera coincidência ou quereria significar alguma coisa mais? Será que quereria terminar onde começou a UNITA (Muangai) e não foi a tempo? Ou quereria completar o círculo da traição começada no Lucusse? Mas então qual é a traição final: a dos seus companheiros e/ou do povo que dizia defender e o terá entregue? Ou a sua em relação aos seus companheiros e/ou ao povo que dizia defender? Como a nossa intenção não é responder a esses interrogatórios, mas colocar a questões passaremos para a análise de outro ponto: tratamento da imagem.
As imagens que nos chegaram e foram distribuidas pela TPA constituiram, entre outras coisas, uma elevada profanação da sacralidade da morte. Aprendemos desde tenra idade que os mortos são sagrados e, malgrado a lógica da guerra, devem merecer um mínimo de dignidade.
Para quem acompanha as imagens de sinistralidade dos ataques terroristas que tiveram lugar em países ocidentais, desde o 11 de Setembro, há-de constatar que os mortos não têm rosto. Fala-se do número, mostram-se, as vezes, alguns corpos, mas sem rosto, isto é, reserva-se a dignidade a que têm direito. Mas então que fizemos dos nossos princípios sagrados? Dir-me-ão: ele não respeitava os vivos! Quanto mais os mortos? Pois bem, quando não temos elevação moral suficiente para preservarmos a dignidade que existe em nós, penso eu, que nos tornámos pior do que aquele que queremos sancionar.
Queria partilhar com todos, mas sobretudo os meus coetâneos que sobre a nossa história podem não ter algumas informações, daí a incursão pela história na primeira parte. Na segunda, é um desagrado pela nossa mídia no tratamento das imagens dos mortos, doentes de sida, estropiados...

*Título do livro do ex-deputado do MPLA, Alexandre Gurgel " Um Calvário Chamado Jonas"(1999/2000?)???( que alguém me ajude a precisar a referência!!!).

Upindi Pacatolo

terça-feira, fevereiro 14, 2006

DASABITUAÇÃO DA LÓGICA ILÓGICA

É segunda feira. São 19h30, encontro-me na biblioteca João Paulo II da Universidade Católica Portuguesa. Depois de horas passadas a estudar, eis que me levanto e arrumo as minhas vikuatas*. Nesse instante, sinto atrás de mim alguém a fazer o mesmo e, então, viro-me para identificar a pessoa: era um irmão nosso. Despachei-me e saí à toda pressa, mas estacionei à entrada fingindo ler uns periódicos, já que o nosso irmão seguia-me. Quando ele saiu, a ordem inverteu-se: começei a seguir o meu seguidor. Apanhei-o antes dos semáforos.
Para não variar, meti conversa com o nosso amigo e percebi que era um compatriota. Perguntei: o que fazia pela Católica? Respondeu: estou a fazer uma Pós-graduação. Donde és? Sou de Luanda. Desculpa, na verdade vivo em Luanda, mas sou do Lobito. Wau, exclamei lá bem dentro de mim, e voltei a carga: de que zona és, no Lobito? Restinga! Que chique, disse para mim mesmo. Em que rua da Restinga? Para meu desalento, o nosso compatriótica sentiu-se encurralado e disparou: porquê tanta pergunta? És angolano? Conheces o Lobito? Confesso que fiquei engasgado, porque o interrogatório estava a correr tão bem que não temi que fosse voltar a ficar em desvantagem. Então respondi: sou angolano! Não se nota? Não! O teu sotaque é diferente!!! Fiquei triste, porque até agora estava convencido de que o meu sotaque voltara ao "normal", mas engano meu!!!
Passado este momento, o nosso amigo abriu o coração e disse: na verdade, sou do Kuito-Bié. Não percebi o jogo, porque estava desabituado dessa lógica das omissões ou adopção de novas naturalidades. Por sorte, fez-se luz e comecei a raciocinar, passando-me pela cabeça o filme todo de quantos angolanos conhecidos e anónimos das terras do Huambo, Bié e Interior de Benguela que negaram as suas naturalidades com medo de represálias ou de fecharem-se-lhes as portas da sorte ou oportunidades, daí optarem por ser, preferentemente, de Luanda ou Lobito, quando não Catete!!!( basta ler "Os Predadores" de Pepetela").
A guerra que assolou o país parece ter criado indelevelmente cidadãos estratificados por categorias absurdos: diz-me donde és e dir-te-ei quem tu és. Que absurdo! Que sinismo! Mas é a verdade verdadeira sobre a nossa história recente e, pior ainda, futura, já que não se vislumbra vontade política nem académica para nos livrar-mos da propaganda militar e política. Peço desculpa por ter dito vontade académica, na verdade queria dizer propaganda escolar, uma vez que a cultura académica está mais lenta que a reabilitação do CFB(Caminho de Ferro de Benguela).
Na recta final da nossa conversa, perguntei pelo nome do nosso amigo. Disse-me primeiro o nome português, como manda a boa regra de etiqueta angolana. Pensando consigo que acabara o interrogatório, voltei a carga:João** quê? João Kambundi! Então pus-me a explicar-lhe o nome Umbundu e, para meu espanto, o irmão soltou um sorriso e disse: na verdade és mesmo da zona! A frase saiu como um suspiro de alívio, porque percebera que eu era um dos seus e a conversa tomou outro rumo, com o nosso Umbundu a mistura. O resto do filme fica para mim!!!
Pensei que você tem o direito de saber que muito do que toma por adquirido, hoje em Angola, faz ainda parte duma lógica de guerra e propaganda política. Onde ser-se das terras do planalto central ou interior de Benguela era e, infelizmente, continua a ser sinónimo de pertença à UNITA. Este mito foi alimentado pela própria UNITA para justificar e legitimar a sua luta em defesa duma suposta "maioria" e pelo próprio Governo do MPLA para legitimar a sua luta contra um líder étnico e seus sequazes. Tudo lógica da guerra e propaganda política, com meias verdades, ofuscando a «verdade efectiva».
Como resultado: temos pessoas que para sobreviverem e terem acesso a oportunidades razoáveis, no seu próprio país, tiveram que renunciar as suas naturalidades "incómodas" e guardarem bem longe a sua memória colectiva até o uso da sua língua, inventando outras histórias e heróis para os filhos. Desafio: a nós, geração das incertezas e oportunidades, cabe o desafio de separar, no discurso do dia-a-dia a propaganda política da «verdade efectiva dos factos».***

É pura realidade e qualquer semelhança com a ficção é apenas coincidência.

*Vikuatas=haveres, pertenças
**Nome fictício, mas o segundo é o nome duma raíz usada na Kissangua(sumo de milho) "Mbundi", sendo "Kambundi" o diminuitivo por prefixação.
***Maquiavel, "O Príncipe"

Upindi Pacatolo

terça-feira, janeiro 17, 2006

RAUL DAVID NÃO MORREU

“No news is good news”. Lembrei da máxima inglesa segundo a qual nenhuma notícia é boa… porque agrada uns e desagrada outros. Só que, me recusava a acreditar que existisse alguém alegre com a notícia da morte de Raul Mateus David. Enquanto viveu, Tio Raul, como era tratado, conquistou para si vários títulos: poeta, historiador, escritor, actor, ex-adido cultural da embaixada de Angola no Zimbabué, etc. E não será a idade nem a morte que apagarão o que escreveu com suor e muita massa cinzenta. Se não for recordado por isso, que ao menos seja por (aos 86 anos) deixar entre órfãos um bebé, e 11 livros publicados. Um verdadeiro homem de obras!
A morte por cá é, na realidade, um infortúnio de difícil convivência, cujo efeito só o tempo ajuda a aceitar. As formas de manifestação do inconformismo são variadíssimas: canções, danças, conversas, forma de vestir, nomes que se atribuem aos órfãos, etc. Traiçoeira, inesperada, infausta… E nesse caso, nem a mediática idade foi tida e achada na hora de avaliar eventuais factores para o falecimento do Velho, nascido no município da Ganda. Reacções: notas fúnebres de todo o lugar inundavam as redacções da mídia, parecendo mais um daqueles engarrafamentos na estrada Lobito/Benguela quando mais um rico vai a enterrar. Excelente momento para se dissipar qualquer dúvida sobre a importância de Raul David nos mais diversos segmentos sociais.
Porém, e sem querer julgar ninguém, quem viu o talk show Janela Aberta, da TPA – Televisão Pública de Angola, edição de segunda-feira, 21 de Fevereiro, entendeu, nas palavras de Analtina Dias, co-apresentadora, como nem tudo corria bem na vida de Raul David. Sem precisar ir a fundo, com cara de consternação revelou Analtina que, “por vezes, quando alguém goza de um status social, a impressão que temos é a de que tudo vai bem; mas o lado triste é que os apoios não vêm quando mais se precisam”. Quem viu o Janela Aberta ficou a saber igualmente, através da Jornalista, que Tio Raul esteve internado numa das clínicas do município do Lobito, onde há alguns dias vinha recebendo tratamento, com “uma recuperação satisfatória, segundo os médicos”. Não é preciso ser génio para perceber nas entrelinhas eventuais causas secundárias.
“O governo de Benguela já criou uma comissão para preparar as exéquias fúnebres do escritor Raul David, falecido no princípio da noite passada, aos 86 anos”, ouvia-se num dos noticiários da Rádio Nacional de Angola. Confesso que não sei, ao certo, de que horas era referente o noticiário. Nessa vida, às vezes fica difícil distinguir quando começa a manhã e quando termina a noite, pois é, como digo, se isolarmos as horas do relógio e as lógicas da sucessão dos dias e das noites; a questão é simples: tanto se sonha de dia (quando nos ferra o sonho de uma vida melhor num toque de magia – já que com o salário nem vale a pena contar); como também passamos as noites acordados (quando nos ferram ou a insónia constante da falta de mosquiteiros ou a carga emocional do dia a dia). É Angola a crescer, e estamos cá para contribuir!
A recente homenagem do Ministério da Cultura foi a sua última “ceia” com intelectuais de Benguela, quando, com gosto e carinho, se enalteceu, na voz do historiador Arjago, a vida e obra de Raul David, o homem também conhecido pelo seu “português e vestir de português/branco”.
Ainda guardo em memória as estórias e fábulas que ouvi de Raul David, quando em 1996 eu frequentava as gravações de um programa infantil da TPA-Benguela. Com ansiedade aguardo a oportunidade de assistir ao “Comboio da Canhoca”, filme de que o Velho foi actor, ler “Colonizados e colonizadores” – livro seu bastante referenciado. Nunca é tarde demais.
Vai a enterrar em breve no Cemitério da Camunda com toda a pompa e já imagino o desfile de alguns que disputarão com o caixão a atenção da imprensa. Detesto oportunismos e, não tendo havido em vida ligação entre nós, não vou ao funeral. Do meu canto acompanharei tudo, porque como Umbundu aprendi que “onambi lonambi ikwete una Yaloña” (“cada macaco no seu galho”).

PS: se para uns recordar é viver, para outros é sofrer duas vezes. Nas vésperas do primeiro aniversário do passamento físico do escritor angolano, Raul David, resolvi retomar esse texto que elaborei naquela altura.


Gociante Patissa, Lobito