terça-feira, janeiro 17, 2006

RAUL DAVID NÃO MORREU

“No news is good news”. Lembrei da máxima inglesa segundo a qual nenhuma notícia é boa… porque agrada uns e desagrada outros. Só que, me recusava a acreditar que existisse alguém alegre com a notícia da morte de Raul Mateus David. Enquanto viveu, Tio Raul, como era tratado, conquistou para si vários títulos: poeta, historiador, escritor, actor, ex-adido cultural da embaixada de Angola no Zimbabué, etc. E não será a idade nem a morte que apagarão o que escreveu com suor e muita massa cinzenta. Se não for recordado por isso, que ao menos seja por (aos 86 anos) deixar entre órfãos um bebé, e 11 livros publicados. Um verdadeiro homem de obras!
A morte por cá é, na realidade, um infortúnio de difícil convivência, cujo efeito só o tempo ajuda a aceitar. As formas de manifestação do inconformismo são variadíssimas: canções, danças, conversas, forma de vestir, nomes que se atribuem aos órfãos, etc. Traiçoeira, inesperada, infausta… E nesse caso, nem a mediática idade foi tida e achada na hora de avaliar eventuais factores para o falecimento do Velho, nascido no município da Ganda. Reacções: notas fúnebres de todo o lugar inundavam as redacções da mídia, parecendo mais um daqueles engarrafamentos na estrada Lobito/Benguela quando mais um rico vai a enterrar. Excelente momento para se dissipar qualquer dúvida sobre a importância de Raul David nos mais diversos segmentos sociais.
Porém, e sem querer julgar ninguém, quem viu o talk show Janela Aberta, da TPA – Televisão Pública de Angola, edição de segunda-feira, 21 de Fevereiro, entendeu, nas palavras de Analtina Dias, co-apresentadora, como nem tudo corria bem na vida de Raul David. Sem precisar ir a fundo, com cara de consternação revelou Analtina que, “por vezes, quando alguém goza de um status social, a impressão que temos é a de que tudo vai bem; mas o lado triste é que os apoios não vêm quando mais se precisam”. Quem viu o Janela Aberta ficou a saber igualmente, através da Jornalista, que Tio Raul esteve internado numa das clínicas do município do Lobito, onde há alguns dias vinha recebendo tratamento, com “uma recuperação satisfatória, segundo os médicos”. Não é preciso ser génio para perceber nas entrelinhas eventuais causas secundárias.
“O governo de Benguela já criou uma comissão para preparar as exéquias fúnebres do escritor Raul David, falecido no princípio da noite passada, aos 86 anos”, ouvia-se num dos noticiários da Rádio Nacional de Angola. Confesso que não sei, ao certo, de que horas era referente o noticiário. Nessa vida, às vezes fica difícil distinguir quando começa a manhã e quando termina a noite, pois é, como digo, se isolarmos as horas do relógio e as lógicas da sucessão dos dias e das noites; a questão é simples: tanto se sonha de dia (quando nos ferra o sonho de uma vida melhor num toque de magia – já que com o salário nem vale a pena contar); como também passamos as noites acordados (quando nos ferram ou a insónia constante da falta de mosquiteiros ou a carga emocional do dia a dia). É Angola a crescer, e estamos cá para contribuir!
A recente homenagem do Ministério da Cultura foi a sua última “ceia” com intelectuais de Benguela, quando, com gosto e carinho, se enalteceu, na voz do historiador Arjago, a vida e obra de Raul David, o homem também conhecido pelo seu “português e vestir de português/branco”.
Ainda guardo em memória as estórias e fábulas que ouvi de Raul David, quando em 1996 eu frequentava as gravações de um programa infantil da TPA-Benguela. Com ansiedade aguardo a oportunidade de assistir ao “Comboio da Canhoca”, filme de que o Velho foi actor, ler “Colonizados e colonizadores” – livro seu bastante referenciado. Nunca é tarde demais.
Vai a enterrar em breve no Cemitério da Camunda com toda a pompa e já imagino o desfile de alguns que disputarão com o caixão a atenção da imprensa. Detesto oportunismos e, não tendo havido em vida ligação entre nós, não vou ao funeral. Do meu canto acompanharei tudo, porque como Umbundu aprendi que “onambi lonambi ikwete una Yaloña” (“cada macaco no seu galho”).

PS: se para uns recordar é viver, para outros é sofrer duas vezes. Nas vésperas do primeiro aniversário do passamento físico do escritor angolano, Raul David, resolvi retomar esse texto que elaborei naquela altura.


Gociante Patissa, Lobito

2 comentários:

Avó do Miau disse...

É a primeira vez que venho a este blog e gostei muito. Hei-de voltar para ler com mais calma.
Felicidades.

Upindi Pacatolo disse...

Dra. Daniela Mann obrigado por nos ter visitado. Agradeciamos que indicasse o caminho aos seus e nos escrevessem, porque a nossa maior alegria é partilhar ou comunicar. Até breve!!!