terça-feira, fevereiro 14, 2006

DASABITUAÇÃO DA LÓGICA ILÓGICA

É segunda feira. São 19h30, encontro-me na biblioteca João Paulo II da Universidade Católica Portuguesa. Depois de horas passadas a estudar, eis que me levanto e arrumo as minhas vikuatas*. Nesse instante, sinto atrás de mim alguém a fazer o mesmo e, então, viro-me para identificar a pessoa: era um irmão nosso. Despachei-me e saí à toda pressa, mas estacionei à entrada fingindo ler uns periódicos, já que o nosso irmão seguia-me. Quando ele saiu, a ordem inverteu-se: começei a seguir o meu seguidor. Apanhei-o antes dos semáforos.
Para não variar, meti conversa com o nosso amigo e percebi que era um compatriota. Perguntei: o que fazia pela Católica? Respondeu: estou a fazer uma Pós-graduação. Donde és? Sou de Luanda. Desculpa, na verdade vivo em Luanda, mas sou do Lobito. Wau, exclamei lá bem dentro de mim, e voltei a carga: de que zona és, no Lobito? Restinga! Que chique, disse para mim mesmo. Em que rua da Restinga? Para meu desalento, o nosso compatriótica sentiu-se encurralado e disparou: porquê tanta pergunta? És angolano? Conheces o Lobito? Confesso que fiquei engasgado, porque o interrogatório estava a correr tão bem que não temi que fosse voltar a ficar em desvantagem. Então respondi: sou angolano! Não se nota? Não! O teu sotaque é diferente!!! Fiquei triste, porque até agora estava convencido de que o meu sotaque voltara ao "normal", mas engano meu!!!
Passado este momento, o nosso amigo abriu o coração e disse: na verdade, sou do Kuito-Bié. Não percebi o jogo, porque estava desabituado dessa lógica das omissões ou adopção de novas naturalidades. Por sorte, fez-se luz e comecei a raciocinar, passando-me pela cabeça o filme todo de quantos angolanos conhecidos e anónimos das terras do Huambo, Bié e Interior de Benguela que negaram as suas naturalidades com medo de represálias ou de fecharem-se-lhes as portas da sorte ou oportunidades, daí optarem por ser, preferentemente, de Luanda ou Lobito, quando não Catete!!!( basta ler "Os Predadores" de Pepetela").
A guerra que assolou o país parece ter criado indelevelmente cidadãos estratificados por categorias absurdos: diz-me donde és e dir-te-ei quem tu és. Que absurdo! Que sinismo! Mas é a verdade verdadeira sobre a nossa história recente e, pior ainda, futura, já que não se vislumbra vontade política nem académica para nos livrar-mos da propaganda militar e política. Peço desculpa por ter dito vontade académica, na verdade queria dizer propaganda escolar, uma vez que a cultura académica está mais lenta que a reabilitação do CFB(Caminho de Ferro de Benguela).
Na recta final da nossa conversa, perguntei pelo nome do nosso amigo. Disse-me primeiro o nome português, como manda a boa regra de etiqueta angolana. Pensando consigo que acabara o interrogatório, voltei a carga:João** quê? João Kambundi! Então pus-me a explicar-lhe o nome Umbundu e, para meu espanto, o irmão soltou um sorriso e disse: na verdade és mesmo da zona! A frase saiu como um suspiro de alívio, porque percebera que eu era um dos seus e a conversa tomou outro rumo, com o nosso Umbundu a mistura. O resto do filme fica para mim!!!
Pensei que você tem o direito de saber que muito do que toma por adquirido, hoje em Angola, faz ainda parte duma lógica de guerra e propaganda política. Onde ser-se das terras do planalto central ou interior de Benguela era e, infelizmente, continua a ser sinónimo de pertença à UNITA. Este mito foi alimentado pela própria UNITA para justificar e legitimar a sua luta em defesa duma suposta "maioria" e pelo próprio Governo do MPLA para legitimar a sua luta contra um líder étnico e seus sequazes. Tudo lógica da guerra e propaganda política, com meias verdades, ofuscando a «verdade efectiva».
Como resultado: temos pessoas que para sobreviverem e terem acesso a oportunidades razoáveis, no seu próprio país, tiveram que renunciar as suas naturalidades "incómodas" e guardarem bem longe a sua memória colectiva até o uso da sua língua, inventando outras histórias e heróis para os filhos. Desafio: a nós, geração das incertezas e oportunidades, cabe o desafio de separar, no discurso do dia-a-dia a propaganda política da «verdade efectiva dos factos».***

É pura realidade e qualquer semelhança com a ficção é apenas coincidência.

*Vikuatas=haveres, pertenças
**Nome fictício, mas o segundo é o nome duma raíz usada na Kissangua(sumo de milho) "Mbundi", sendo "Kambundi" o diminuitivo por prefixação.
***Maquiavel, "O Príncipe"

Upindi Pacatolo

1 comentário:

Salucombo_Jr. disse...

terminar uma guerra não baste que os tiros parem, o que vem a seguir tambem são batalhas.