segunda-feira, abril 04, 2005

TRÊS ANOS DE PAZ, E AGORA?

Como comemorar a paz de 4 de Abril, com a guerra em CabindaNeste mês de Abril, Angola celebra o fim da guerra que durante quase três décadas dilacerou profundamente a nossa sociedade. Felizmente o triste calvário, de confronto armado, de matanças de civis inocentes, de destruição incalculável das infra-estruturas, de retrocesso transversal a todos os níveis, parece ter terminado. E digo parece ter terminado porque Cabinda tem estado em guerra; porventura sem a mesma intensidade - e com certeza sem a mesma cobertura mediática - daquela que verificávamos na guerra levada a cabo pelos dois grandes movimentos de libertação, hoje na veste de partidos políticos. É por isso, de certo modo, contraditório falar de paz em Angola, enquanto uma província sua se confronta com um indesmentível estado de guerra, a menos que, afinal, Cabinda não é Angola. Segundo relatos do clero local e da organização cívica Mpalambanda tem havido confrontos armados, se bem que esporádicos, dado que a guerrilha ficou desarticulada, que têm dizimado vidas humanas de civis inocentes, e está instalado em Cabinda um clima de quase estado policial, senão de terror, com os cidadãos a viverem em permanente insegurança. Então não foi por causa deste estado de coisas que organizações cívicas, pastores das igrejas angolana, partidos políticos da oposição civil se bateram, durante muito tempo, pelo fim da guerra? E se ela continua em parte do território nacional, porque razão há-de se fazer silêncio? Ou será que as vidas em causa em Cabinda valem menos do que noutras partes de Angola? Ou será que a intolerância política e as ameaças de morte de que são alvo os nossos concidadãos em Cabinda, que não são militares e nem estão nos cenários de confronto armado, não dizem respeito aos angolanos pacifistas, religiosos, humanistas e activistas de direitos humanos? É óbvio, quero crer, que dizem respeito! Sendo assim, apenas posso compreender que só razões de ordem táctica e oportunista estejam em causa; uma vez que a questão de fundo de Cabinda, na sua vertente de luta pela independência, seja politicamente fracturante: ou se é a favor da independência ou não. Ou seja, as pessoas parece recearem reprovar as práticas do Governo em Cabinda, porque temem ser vistos, ou conotados, como defensores da causa dos independentistas. Esse prisma maniqueísta de colocar o problema: de um lado os que são a favor da independência e de outro os que não são, é falacioso, senão falso. Porquanto não ser a favor da independência não é incompatível com a defesa da vida, do diálogo, da tolerância, da estabilidade e da paz social em Cabinda. Torna-se assim lamentável e incompreensível o silêncio que se tem observado em relação ao caso Cabinda; bem se percebe que o Governo está, hoje, com o «baralho» todo e portanto determina as regras do jogo. Contudo, julgo que não vale a pena o Governo continuar a «fazer de conta» que o problema não existe, dado que se trata de um problema real e com raízes profundas, e que não parece que vá terminar brevemente só porque há uma presença esmagadora das Forças Armadas Angolanas, que até terão destroçado a guerrilha das facções independentistas. Apesar de não conhecer, quiçá o mínimo necessário, da história e dos fundamentos subjacentes à questão de Cabinda, que me autorizariam a falar com propriedade, parece-me que o problema é fundamentalmente político e reclama, em consequência, uma solução política. É evidente que não sabemos se no mais profundo da vontade dos cidadãos de Cabinda haverá a aspiração pela independência tal como defendem alguns dos independentistas; será o mesmo que dizer que ninguém pode afirmar com certeza absoluta que as Flec’s representam a maioria dos cidadãos de Cabinda. Ou se, pelo contrário, não será uma consciência de injustiça e marginalização social que está em causa e que atiça o sentimento de autodeterminação em muitos cidadãos que habitam aquela parcela territorial. Porém, ainda que a luta que parte do povo de Cabinda faz resulte mais duma consciência de injustiça e menos de convicção pela genuína autodeterminação fundada, ainda assim estamos perante um problema que reclamaria do Estado soluções pensadas e não apenas sustentada força. É incorrecto e muito leviano refutar o sentimento de independência que se baseia no sentimento de injustiça dizendo apenas que «a ser assim, todas as províncias que se sentem injustiçadas, como são, a título de exemplo, os casos das «Lundas», teriam também direito à independência». A coesão e integridade nacionais asseguram-se mais com a integração e desenvolvimento das várias regiões (ou se quisermos províncias) que compõem o país, dando-lhes a autonomia necessária para que protagonizem, elas próprias, o desenvolvimento, com respeito pela unidade nacional, pela justa e proporcional contribuição pelo esbatimento das assimetrias existentes no todo nacional. Na verdade, com o actual sistema em que os governadores provinciais têm a mínima, ou até nenhuma, legitimidade democrática, mas acabam por ser os senhores «todo-poderoso» nas provinciais, decidindo sozinhos as prioridades do interesse público e o que fazer com os dinheiros que são destinados pelo Orçamento Geral do Estado às províncias, vão-se eternizar e reproduzir os sentimentos de exclusão e injustiça, causadores de convulsões sociais. E o problema torna-se mais grave se tivermos em conta a maior parte das províncias do interior do país, que são tratadas como parentes paupérrimos do Governo central. Faz todo o sentido que no quadro da reforma política do Estado, mormente na elaboração da futura Constituição, se eleja como prioridade incontornável a instauração das autarquias locais. É preciso que os problemas mais próximo dos cidadãos sejam resolvidos pelas autoridades locais que estejam mais próximo deles, partindo do pressuposto de que o Estado proporcionará os meios financeiros e administrativos necessários à execução das respectivas tarefas. As autarquias locais permitem que os cidadãos se sintam envolvidos e participes na governação dos interesses que lhes são mais próximos e dizem directamente respeito, com isso, serena o sentimento de marginalização em face das decisões políticas que influenciam o seu dia a dia; as autarquias locais servem também como uma escola política dos futuros dirigentes da Administração central do Estado e um espaço de acolhimento de todos aqueles que legitimamente aspiram exercer o poder político. Claro que Cabinda é um caso sui generis; mas a sua resolução passa inquestionavelmente pela existência de vontade política, de abertura para o diálogo e de ponderação criativa dos protagonistas políticos e sobretudo dos decisores. Nada obsta a que, no quadro da reforma política em curso no país, se pense num modelo de autonomização para Cabinda. É de elementar justiça que os cidadãos de Cabinda sintam que a sorte natural que tiveram ao nascerem naquele território tem implicações no nível e qualidade de vida que merecem ter - tal como merecem todos os angolanos, porque as riquezas que têm, racional e equitativamente distribuídas, o permitem. Voltando à questão inicial: a continuação da guerra em Cabinda não é nada de surpreendente, atesta bem os precedentes que se foram sedimentando na nossa história recente, de incapacidade de diálogo face a problemas de natureza político. Claro que não advogo que o Estado se demita de assumir a sua função de garante da legalidade. Mas o exercício dessa função não pode cegar o Estado na busca das soluções que acautelem valores maiores em causa, como seja a vida humana, a estabilidade e a paz, que são, afinal, os pressupostos para a instauração de um verdadeiro Estado democrático de direito e de um clima propício ao relançamento da nossa economia. Só neste quadro dar-me-ia por satisfeito e aceitaria comemorar - com a euforia que se apela e em plenitude - o dia 04 de Abril, porque traduziria efectivamente paz em Angola, de outro modo, seria nos iludirmos.

Pedro Romão, Estudante de Direito da UCP - PORTO e Membro da Associação Justiça, Paz e Democracia

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