sábado, março 19, 2005

VERGONHA OU FINURA?

O tempo passa e com ele coisas boas e más. Encontrámo-nos e nos desencontrámos com pessoas, umas boas e outras como Deus permite. Mas a vida é feita de pequenas e grandes coisas ... e o olhar dual para a realidade que nos interpela é quase forçoso. Nesse ir e vir, há coisas que vão ficando teimosamente. Assim, é o caso de uma frase que se vai tornando refrão nos nossos encontros e reencontros:«mudámos de continente, mas não mudámos de hábitos e costumes!». Se para algumas coisas e situações este refrão é motivo de orgulho e identidade, para outras é motivo de grande vergunha e pesar. Vamos falar daquelas (coisas e situações de orgulho e identidade).
À boa maneira da terra, fazer anos é um grande acontecimento e serve de pretexto para juntar família e amigos, em casa no final de semana - à volta de um bom calulu, feijão de óleo de palma, sumate, peixe grelhado ( na falta de um bom mukako) e o nosso pirão - para cantar os parabéns, desejar felizes e longos anos de vida, dançar, comer e beber. O momento é também aproveitado para o reencontro de amigos, separados pelas dificuldades e exigências inerentes à vida de emigração; para matar saudades e meter a conversa em dia; aproximações e troca de experiência entre gerações.
A pouco e pouco o ambiente vai aquecendo, e quando o encontro é em casa de alguém de respeito, em vez das nossas músicas e danças "modernas", ouve-se boa música da terra e conversa-se educadamente. O que é quase impossível hoje nas nossas festas e encontros, acontece com toda naturalidade: ninguém dança, simplestemente aproveita-se o momento para reflectir, trocar ideias, identificar pessoas e lugares comuns, recuar no tempo e no espaço distantes (para uns) e próximos (para outros), ouvir os mais velhos e ganhar juízo. Todos portam-se lindamente como se alguém tivesse dito «na minha casa as regras do jogo são essas!»
Entretanto, o tempo passa e os mais novos apercebem-se que os kotas são todos do Lobito excepto um de Benguela. Encorajados pela proximidade, começam a dar sinal de alguma impaciência. Para admiração dos kotas, os miúdos vão exprimindo a sua impaciência e o seu descontentamento não em calão, mas em Umbundu. Com esforço, os kotas percebem que não estão diante de uns miúdos quaisquer.
Nesse instante, porque a conversa já estava temperada com a cerveja, tornando-se quase impossível mantê-la só em Português, um dos miúdos pergunta aos kotas «alguém não fala ou não percebe Umbundu»? Depois de um breve silêncio, a resposta não se fez esperar «ninguém»! «Que alívio! Podemos conversar à vontade , sem correr o risco de ofender alguém por se sentir excluído» - desatou um dos miúdos.
De tão à vontade, os miúdos esqueceram-se do Português e começaram a falar fluentemente em Umbundu. Os kotas espantados e boqueabertos, dão-se conta que a geração da guerra fala tão bem e tão à vontade a língua que eles se desabituaram com o tempo - "não sei se é por vergonha ou finura, mas que finura é essa" (cf. Dog Murras). Do meio da assembleia, uma voz fez-se ouvir« vocês são mesmo do Lobito»? Em uníssono, os miúdos responderam «sim»! A voz carregada de alegria e admiração continuou « mas onde aprenderam a falar tão bem a nossa língua? Nós não falámos e nem entendemos tudo o que vocês dizem»! Intrigados, os miúdos responderam« aprendemos no Lobito, em nossas casas e aperfeiçoamos com nosso esforço e nossa vontade. Nós vivemos o mato na periferia da cidade». «Mas nós também somos do vosso bairro»! Rematou aquela voz do kota.
Sentido-se iluminado, um dos miúdos rematou« vocês cresceram numa época de transição do campo para a cidade, da colonização para a descolonização, em que falar Umbundu ou outra língua nacional era complicado. Vossos pais preferiram ensinar-vos Português e incentivar-vos no seu uso para não ficarem privados de muitas oportunidades, negando-vos assim um bem inalienável e tão precioso que é a vossa língua nacional. Esta ficaria por vossa conta e inteira responsabilidade, uma vez homens e mulheres que podessem lutar pelo seu ensino, defesa e preservação porque vos identifica como nação Bantu. Porém vocês cresceram e envergonharam-se do vosso passado e da vossa memória colectiva penetráveis apenas pela língua nacional. E, o resultado não podia ser outro senão esse.
Quanto a nós, geração da guerra, tivemos outra sorte. A escola deslocou-se para a periferia ( pelo menos os primeiros anos escolares); a cidade deixou de ser tão atractiva; a companhia dos avós e dos pais passou a ser fundamental na ausência de luz eléctrica e televisão. Apredemos o Umbundu! A guerra pós-eleitoral obrigou-nos a fugir muitas vezes e, nessas fugas redescobrimos o valor e o preço da nossa identidade linguística e da nossa unidade na diversidade. Aprendemos a dar valor a um bem inalienável: a língua. Por isso, sempre que nos encontrámos ou comunicámos fazemo-lo em Umbundu, mantendo a preocupação de não excluir ninguém do nosso convívio»! Ouviu-se do fundo da sala«Wamba ondaka!»
Upindi Pacatolo

1 comentário:

Anónimo disse...

curti