sexta-feira, fevereiro 24, 2006

AGORA É QUE VÃO APANHAR CAFÉ!!!

Há quatro anos, num belo domingo 24 de Fevereiro de 2002, encontrava-me numa das Igrejas do Lobito a meditar, momentos antes da Missa Dominical das 10h00. Nesse instante, entra uma senhora amiga, na casa dos seus 50 anos, toca-me no ombro esquerdo e diz « sekulu wafa, kalye wendi k'ondalatu! v'ukanoli o café k'imbo lyamale!» (1). Confesso que entendi o que disse, mas não compreendi e nem consegui fazer o devido enquadramento. Intrigado, tentei concentrar-me na missa que estava prestes a começar.
Quando terminou a missa, saí da Igreja e fiquei lá fora a conversar com amigos. Eis que aparece o nosso pároco que se junta ao grupo e participa da conversa. Dada a nossa proximidade, seguimos juntos para almoçar. Durante o almoço vieram-me as frases da senhora e disse-as ao padre, na esperança que ele me ajudasse a fazer o devido enquadramento. Para meu espanto, jovem da casa dos vinte anos, aquelas palavras tinham uma verdade histórica que eu desconhecia completamente.
No rescaldo da guerra imediatamente a seguir a Independência, entre os anos de 1976 a 1978, houve uma brutal escassez de alimentos e paralização dos campos de algodão e café do norte de Angola. Para fazer face a esse desafio, o governo de Angola reeditou a guerra do Kwata-Kwata (2) nas terras do planalto e sul de Angola (3) afim de obter trabalhadores agrícolas indispensáveis para revitalização da agricultura nas roças do norte.
Se com a independência, os camponêses do planalto e sul de Angola puderam sonhar com o fim do seu recrutamento forçado para aquelas roças, a sua reedição por um governo independente foi um golpe duríssimo na sua ilusória liberdade. O líder da UNITA, Jonas Savimbi, agastado com a fraqueza e quase exaustão das forças que conseguiram sobreviver à retira das cidades, em direcção as matas do leste (Jamba), onde se reorganizará a luta de resistência, aproveitará esse facto mais a presença dos cubanos para moblizar aqueles camponêses e relativos à sua causa. O aproveitamento político desse facto e o apelo à resistência a guerra do Kwata-Kwata e a invasão cubana atraiu para as matas muita gente farta da opressão e brutalidade das roças. Conta a história que foi assim que Savimbi conseguiu pôr fim a guerra do Kwata-Kwata. É bem conhecida a máxima Umbundu que Savimbi usava com frequência «ise okufa, etombo livala» (4).
Talvez isso explica, em parte, porque pessoas da minha geração naturais das zonas do planalto e sul de Angola tenham crescido em meios onde os adultos nutriam (e nutrem) uma grande admiração e respeito, quando não devoção, pelo mais velho (Savimbi), que consideravam seu libertador tanto da opressão colonial quanto da opressão do novo governo, malgrado todos os dizeres verdadeiros ou não das atrocidades do mais velho.
Mas para os nascidos depois da independência continua a existir muitas coisas difíceis de compreender, hoje, porque a história foi-lhes negada por muito tempo. Os que a viveram preferem calar, quando não a contam com muita amargura, sendo difícil distinguir o facto da sua recriação. Dessa forma aprendi mais um pouquinho da nossa difícil e complicada história política.

(1) Morreu o mais velho, agora ireis apanhar café em terras do norte como contratados;
(2) Guerra do Kwata-Kwata: literalmente, guerra do apanha-apanha. Foi desencadeada pelas autoridades coloniais para apanhar camponêses e enviá-los às roças, sobretudo do norte de Angola. As famosas levas de contratados Ovimbundu ou Bailundo;
(3) Planalto e Sul de Angola: pessoalmente, não gosto de usar essas expressões, mas servem para identificar o antigo corredor do Planalto de Benguela ou zonas de povoamento Ovimbundu; assim como, as zonas do norte, identificam as de povoamento Kimbundu mais Kikongo (roças do Uige);
(4) Prefiro antes a morte, do que a escravatura. É um forte apelo a resistência por justa causa: manter a dignidade e a honra do convento.Mas não se compreende plenamente sem a sua complementar: «na floresta, a árvore que não obedece ao vento quebra». Isto é, quando a resistência não é possível, a sabedoria aconselha obediência para sobreviver e contar a história.»

Upindi Pacatolo

quarta-feira, fevereiro 22, 2006

A CHANA DA VERGONHA!

Há quatro anos morria, nas chanas do Leste de Angola, Lucusse, Jonas Malheiro Savimbi. Para uns, morria o pai fundador da UNITA, líder histórico, carismático, controverso... Para outros, simplesmente, um criminoso de guerra, um sanguinário... enfim, um "Calvário Chamado Jonas"*. A par das lutas político-partidárias e das questões intestinais ou figadais, relacionadas com o nome e a pessoa de foi Jonas Malheiro Savimbi, quero reflectir sobre uma coincidência histórica ou não e de algum desagrado com a mídia televisiva, dependendo do ângulo de leitura do leitor.
A expressão que dá título a esta reflexão é do dr. Savimbi. Foi usada em Agosto ou Setembro de 1974, aquando da assinatura do acordo de cessar fogo entre o MPLA-Neto e o exército português, no Lucusse. Jonas Savimbi, nessa expressão, resume aquilo que para ele significou a "traição portuguesa".
Quando se dá o 25 de Abril, em Portugal, o MPLA encontrava-se dividido em três facções: Neto, Chipenda e Joaquim Pinto de Andrade. Chipenda era o comandante das forças do MPLA, na frente Leste. Uma vez em ruptura com o MPLA-Neto, significava que esta ala não tinha presença na frente leste. Mas para mostrar que o MPLA-Neto tinha presença no Leste de Angola, foi criado um cenário militar de guerrilha para acolher o dr.Agostinho Neto que vinha de helicópetero das forças armadas portuguesas para assinar o cessar fogo no interior de Angola. Devido a encenação e ao simbolismo que revestiu e revestirá para o MPLA-Neto, Jonas Savimbi chamou ao Lucusse "A CHANA DA VERGONHA", porque marcava "a primeira traição" de Portugal aos destinos do povo angolano.
No dia 22 de Fevereiro de 2002, Jonas Savimbi morre no Lucusse, aquela que há 28 anos era a "CHANA DA VERGONHA". Porque o seu fim se deu no Lucusse e não noutro lugar? É mera coincidência ou quereria significar alguma coisa mais? Será que quereria terminar onde começou a UNITA (Muangai) e não foi a tempo? Ou quereria completar o círculo da traição começada no Lucusse? Mas então qual é a traição final: a dos seus companheiros e/ou do povo que dizia defender e o terá entregue? Ou a sua em relação aos seus companheiros e/ou ao povo que dizia defender? Como a nossa intenção não é responder a esses interrogatórios, mas colocar a questões passaremos para a análise de outro ponto: tratamento da imagem.
As imagens que nos chegaram e foram distribuidas pela TPA constituiram, entre outras coisas, uma elevada profanação da sacralidade da morte. Aprendemos desde tenra idade que os mortos são sagrados e, malgrado a lógica da guerra, devem merecer um mínimo de dignidade.
Para quem acompanha as imagens de sinistralidade dos ataques terroristas que tiveram lugar em países ocidentais, desde o 11 de Setembro, há-de constatar que os mortos não têm rosto. Fala-se do número, mostram-se, as vezes, alguns corpos, mas sem rosto, isto é, reserva-se a dignidade a que têm direito. Mas então que fizemos dos nossos princípios sagrados? Dir-me-ão: ele não respeitava os vivos! Quanto mais os mortos? Pois bem, quando não temos elevação moral suficiente para preservarmos a dignidade que existe em nós, penso eu, que nos tornámos pior do que aquele que queremos sancionar.
Queria partilhar com todos, mas sobretudo os meus coetâneos que sobre a nossa história podem não ter algumas informações, daí a incursão pela história na primeira parte. Na segunda, é um desagrado pela nossa mídia no tratamento das imagens dos mortos, doentes de sida, estropiados...

*Título do livro do ex-deputado do MPLA, Alexandre Gurgel " Um Calvário Chamado Jonas"(1999/2000?)???( que alguém me ajude a precisar a referência!!!).

Upindi Pacatolo

terça-feira, fevereiro 14, 2006

DASABITUAÇÃO DA LÓGICA ILÓGICA

É segunda feira. São 19h30, encontro-me na biblioteca João Paulo II da Universidade Católica Portuguesa. Depois de horas passadas a estudar, eis que me levanto e arrumo as minhas vikuatas*. Nesse instante, sinto atrás de mim alguém a fazer o mesmo e, então, viro-me para identificar a pessoa: era um irmão nosso. Despachei-me e saí à toda pressa, mas estacionei à entrada fingindo ler uns periódicos, já que o nosso irmão seguia-me. Quando ele saiu, a ordem inverteu-se: começei a seguir o meu seguidor. Apanhei-o antes dos semáforos.
Para não variar, meti conversa com o nosso amigo e percebi que era um compatriota. Perguntei: o que fazia pela Católica? Respondeu: estou a fazer uma Pós-graduação. Donde és? Sou de Luanda. Desculpa, na verdade vivo em Luanda, mas sou do Lobito. Wau, exclamei lá bem dentro de mim, e voltei a carga: de que zona és, no Lobito? Restinga! Que chique, disse para mim mesmo. Em que rua da Restinga? Para meu desalento, o nosso compatriótica sentiu-se encurralado e disparou: porquê tanta pergunta? És angolano? Conheces o Lobito? Confesso que fiquei engasgado, porque o interrogatório estava a correr tão bem que não temi que fosse voltar a ficar em desvantagem. Então respondi: sou angolano! Não se nota? Não! O teu sotaque é diferente!!! Fiquei triste, porque até agora estava convencido de que o meu sotaque voltara ao "normal", mas engano meu!!!
Passado este momento, o nosso amigo abriu o coração e disse: na verdade, sou do Kuito-Bié. Não percebi o jogo, porque estava desabituado dessa lógica das omissões ou adopção de novas naturalidades. Por sorte, fez-se luz e comecei a raciocinar, passando-me pela cabeça o filme todo de quantos angolanos conhecidos e anónimos das terras do Huambo, Bié e Interior de Benguela que negaram as suas naturalidades com medo de represálias ou de fecharem-se-lhes as portas da sorte ou oportunidades, daí optarem por ser, preferentemente, de Luanda ou Lobito, quando não Catete!!!( basta ler "Os Predadores" de Pepetela").
A guerra que assolou o país parece ter criado indelevelmente cidadãos estratificados por categorias absurdos: diz-me donde és e dir-te-ei quem tu és. Que absurdo! Que sinismo! Mas é a verdade verdadeira sobre a nossa história recente e, pior ainda, futura, já que não se vislumbra vontade política nem académica para nos livrar-mos da propaganda militar e política. Peço desculpa por ter dito vontade académica, na verdade queria dizer propaganda escolar, uma vez que a cultura académica está mais lenta que a reabilitação do CFB(Caminho de Ferro de Benguela).
Na recta final da nossa conversa, perguntei pelo nome do nosso amigo. Disse-me primeiro o nome português, como manda a boa regra de etiqueta angolana. Pensando consigo que acabara o interrogatório, voltei a carga:João** quê? João Kambundi! Então pus-me a explicar-lhe o nome Umbundu e, para meu espanto, o irmão soltou um sorriso e disse: na verdade és mesmo da zona! A frase saiu como um suspiro de alívio, porque percebera que eu era um dos seus e a conversa tomou outro rumo, com o nosso Umbundu a mistura. O resto do filme fica para mim!!!
Pensei que você tem o direito de saber que muito do que toma por adquirido, hoje em Angola, faz ainda parte duma lógica de guerra e propaganda política. Onde ser-se das terras do planalto central ou interior de Benguela era e, infelizmente, continua a ser sinónimo de pertença à UNITA. Este mito foi alimentado pela própria UNITA para justificar e legitimar a sua luta em defesa duma suposta "maioria" e pelo próprio Governo do MPLA para legitimar a sua luta contra um líder étnico e seus sequazes. Tudo lógica da guerra e propaganda política, com meias verdades, ofuscando a «verdade efectiva».
Como resultado: temos pessoas que para sobreviverem e terem acesso a oportunidades razoáveis, no seu próprio país, tiveram que renunciar as suas naturalidades "incómodas" e guardarem bem longe a sua memória colectiva até o uso da sua língua, inventando outras histórias e heróis para os filhos. Desafio: a nós, geração das incertezas e oportunidades, cabe o desafio de separar, no discurso do dia-a-dia a propaganda política da «verdade efectiva dos factos».***

É pura realidade e qualquer semelhança com a ficção é apenas coincidência.

*Vikuatas=haveres, pertenças
**Nome fictício, mas o segundo é o nome duma raíz usada na Kissangua(sumo de milho) "Mbundi", sendo "Kambundi" o diminuitivo por prefixação.
***Maquiavel, "O Príncipe"

Upindi Pacatolo