quinta-feira, novembro 24, 2005

LÍNGUA MATERNA OU OFICIAL?

Quinta-feira, 23/09/05. Sei que há quem esteja à espera da hora 19, para se sentar diante do canal 2 da TPA, porque “…é dia de mudar de vida!”, como nos tortura em jeito de publicidade a turma do “Angola dá sorte”. Uns realmente ganham, eu porém faço parte dos que só perdem. Aliás, o primeiro sinal, hoje, é ter perdido o sono antes das duas da manhã.
Deixo a cama, pego nos meus livros, ligo o diskman e uns kizombas dão-me banho. Tento ler, mas me vem à cabeça a pressão social (aquilo que queremos não nos quer; aquilo que não desejamos nos persegue). Insisto, mas não consigo mesmo concentrar-me à leitura. Então recorro ao meu habitual consolo – um bloco e uma bick azul – e ponho-me a escrever. De princípio a letra é feia, mas vai ficar bonita logo no computador.
Disse um angolano na Tuga, certo dia, que a vida se resumia em duas grandes desvantagens: uma era ser jovem e a outra ser mulher. Fiquemos hoje com a primeira. Ora não se tem a idade nem a qualificação ideal para certas oportunidades, ora já se passou dos 30 anos e não dá, mesmo depois de estabelecido o parâmetro 15-35 anos como padrão de juventude. Reclamamos, insultamos as instituições, praguejamos e tudo o mais. Mas também nos lembramos de certas conquistas colectivas e vemos que vale a pena lutar, basta estarmos atentos ao que vai pela imprensa e lubrificar sempre os mecanismos da amizade. Afinal, o autor de “renúncia impossível”, que a dado passo reconhecia “atingi o zero”, foi presidente desse país.
Encontrava-me ainda em Luanda, num seminário, quando um telefonema amigo me incentivou a concorrer à uma vaga numa companhia petrolífera. Confesso, não acredito em nenhum concurso no meu próprio país, muito mais quando dirigido por irmãos angolanos. Mas tento, às vezes, não ser carrasco de mim mesmo e retribuo a consideração dos amigos que gastam do seu saldo e da sua saliva em conselhos. Assim, anteontem, juntei o monte de documentos e fui ao centro de emprego, do Ministério do Trabalho, na minha cidade. (É curioso como a nossa vida é em tamanho A4: certidões de nascimento, contratos, títulos de salário, cartas de despedimentos, certidão de casamento, facturas de luz e telefone, etc., tudo em A4.)
Uma vez lá, encontro um senhor cuja testa parecia estar há anos sem saber o que é sorrir. Pronto, saúdo e avanço, a final não estava ali para semear amizades. Na secção a seguir, uma senhora dá-me o formulário e algumas instruções. Escrevo tão rápido que, volta e meia, tinha tudo preenchido… e a discussão inicia com a atendedora: tudo porque preenchi o Umbundu como sendo a minha língua materna. “A nossa língua materna é aquela que falamos”, dizia ela. Pois claro, mas é essa mesmo a minha língua de berço; tanto o português como o inglês, eu aprendi foi na escola. Que azar me arranjei?! A senhora submeteu-me então a uma cátedra: “língua materna é aquela que herdamos do colonizador, porque é a língua que nos une; olha, um zairense, por exemplo, na escola fala lingala? Claro que não, moço!” Impotente e em desvantagem, disse-lhe apenas que era complicado. “Pois, mas estou-te a fazer entender agora que, no espaço língua materna, escreva português, porque o Umbundu é dialecto apenas!”, ditava ela. Os meus suspiros e reticências não a impediram de pegar no corrector e, a mando dela, eu declarar o português como “minha língua materna”, relegando o meu doce Umbundu ao segundo plano. Deixei o Centro de Emprego bastante contrariado, quase irritado. Já não basta o que basta, agora também me roubam a minha história, a minha dignidade? Será que por necessitar de uma carreira, perco o direito de ter nascido no Quimbo, ter o Umbundu como primeira língua da minha vida, ligada às primeiras memorias que guardo com honra!?
Agora são três e um quarto, e tento voltar à cama, mendigar algumas horas de sono. Se penso em pessoas como tu, por isso não tenho sono, ou se não tenho sono e por isso penso em pessoas como você, isso importa. A verdade é que, às vezes apetece desistir de tudo e morrer por algumas semanas. Mas depois a nossa consciência diz-nos não ser justo, já que ainda resta algo de que nos orgulharmos: os amigos que temos, o espírito lutador e as conquistas acumuladas diante de tanta impossibilidade. Força, há que erguer a cabeça, ainda que nos pisem sobre ela!

Gociante Patissa, Lobito

BEIJOU MILHÕES DE HOMENS E MULHERES NA BOCA

“Nós nos conhecemos quando era 15”, dizia o mestre pintor ao seu ajudante. E o mestre pintor o falava com bastante emoção, tanta que denotava doces lembranças de um passado recente na companhia dela, a baixinha, acastanhada, molhada, a quem ansioso agarrava nas horas mortas, no fim de mais um dia de trabalho, durante o fim de semana, etc.
Se perguntasses a quem naquele momento passasse e ouvisse a passagem acima citada, quanto à tal personagem conhecida quando 15, talvez pensasse numa moreninha bem feita. Quero dizer: pele macia, corpo de viola e um rosto tão bem desenhado que evidenciasse a atenção que o Senhor Criador dispensou quando a esculpiu. Afinal, uma das vantagens da colonização foi ter trazido, à Angola, cabo-verdianos que encheram Benguela de lindas morenas. Mas, na verdade (e desculpe a desilusão), não era da “quinzinha” que estavam a falar; ou melhor, falavam duma “quinzinha” que agora já é a “cinquentinha”, mas que antes teve de passar por “trintinha”, uma assim tão popular como as catorzinhas. O que eu penso ser surpreendente é o facto de ela só existir há menos de 5 anos na província de Benguela, mas já ter beijado milhões de lábios de homens e mulheres. Vadia, promíscua… apetitosa.
Não sei se é por ela ser amiga da maioria que a intitularam de “a nº 1”, já que deste número só tem desgraças e estragos. Voltando à conversa dos dois colegas de profissão, o ajudante e o mestre pintor, afinal estavam a referir-se à cuca, cerveja em garrafa fabricada pela Soba-Sociedade de Bebidas de Angola, na vila da Catumbela, produto da BGI.
No Umbundu, a minha língua materna, o som “kuka” tem forte relação com “okukuka”, que significa envelhecer. Será por isso que os miúdos estão a ter corpos de empresários, principalmente na barriga? Caras empapuçadas, mentes cansadas, enfim, será aí que ela nos leva, ao envelhecimento precoce? Poucos pensarão assim, e também p’ra quê chiar muito, se então a nْ 1 é querida por todas as faixas etárias, sem excepção? Atenção, por respeito à ciência, justo seria abrir uma excepção para os bebés… mas como, se até os fetos cucangolam? P’ra quê e quem sou para discordar da realidade?
Ainda volto a reflectir um pouco na passagem da conversa do mestre e o seu ajudante. Para mim, a graça e ao mesmo tempo tristeza reacenderam quando descobri que as palavras do mestre pintor subentendiam uma grande vitória pela perseguição, sem trégua, infligida ao processo de subida de preços da cuca ao longo dos tempos, desde os 15.00 kz até aos actuais 50.00 kz. A célebre frase “o monte é cem”, entenda-se do monte três cervejas, ainda respira em nossas mentes, tanto como respira a conjugação transitiva directa “cucangolo, cucangolas, cucangola, cucangolamos, cucangolais, cucangolam”. A Catumbela, com tantos problemas sociais que tem, a mesma que se cansou de lutar pelo estatuto de município, ascendeu à categoria de “capital provincial… da cerveja”.
A estrada é estreita, o número de carros e o de acidentes crescem na província, particularmente no troço Lobito – Benguela. “Se beberes não conduza, se conduzires não beba”, a velha máxima de estrada é cada vez mais moribunda. Tão bom seria ver isso também numa placa ao lado dos mais de cinco placares publicitários da “nossa” cerveja, bem vistosos ao longo da via, quando não se vê nem sequer uma publicidade fazendo alusão, por exemplo, à epidemia do século VIH/SIDA, ou do tipo “estudar é produzir” (saudosismo à parte) ou “a criança é o garante do amanhã”, ou “democracia é escolher livremente”…
Nós, Angolanos, precisamos nos divertir e entretermo-nos para se ultrapassar as marcas da guerra. Mas quando alguns já querem condicionar as suas capacidades de raciocínio pelos efeitos do álcool, ignorando voluntariamente a necessidade de segurança e de desenvolvimento, hei…alto ali!

Autor: Lofa Kakumba
Adaptação Gociante Patissa,Lobito

quinta-feira, novembro 17, 2005

TRINTA ANOS DE IGREJA EM TRINTA ANOS DE ANGOLA

Misturado aos trinta anos de Angola está a presença da Igreja nos momentos bons e maus por que passam os angolanos. A ânsia pela independência tem o olhar e a mão de pessoas singulares e colectivas da Igreja Católica. Prisões, maus tratos e deportações marcam a história da Igreja antes da independência. Depois desta, e na estrada dos trinta anos de independência, a história está feita de prisões, mortes, destruições, desapropriações, privações, lágrimas, esperanças e de pronunciamentos diante de situações boas e más da vida dos angolanos.
Os pronunciamentos dos Bispos nestes trinta anos de independência são feitos normalmente através de cartas, de mensagens e de notas pastorais nem sempre vistos com bons olhos. Houve quem visse neles uma intromissão, outros quiseram que fossem uma caixa de ressonância dos ressentimentos que nutriam contra o regime vigente no país, outros ainda esperavam que eles manifestassem o pensar de uma sucursal do partido único. No entanto os Bispos fazem sempre questão de lembrar que essa não é missão nem papel da Igreja.
Primeiros dez anos
Os primeiros anos de país são de grande expectativa e de apreensão crescente por parte dos angolanos. A guerra continua, para espanto de todos. O sossego esperado não aparece. A morte e a destruição reinam em Angola e não poupam nada nem ninguém. Nem mesmo a Igreja e os seus missionários.
Os Bispos apreensivos chamam a atenção de governantes e de homens de boa vontade para a necessidade da reconciliação entre todos. “Os angolanos anseiam pela paz a que têm direito, porque não há outra alternativa: ou o extermínio da população, ou a reconciliação da pátria dilacerada” - lembram os Bispos que acrescentam: “a quantos presidem aos destinos deste martirizado povo, ou que de qualquer outro modo interferem na questão da paz da nossa terra, pedimos que façam o melhor que podem para que acabe a guerra e venha a paz e a reconciliação de toda a família angolana”.
Desta fase da história faz parte a primeira reacção governamental, pública, a um pronunciamento da Igreja.
Segunda década
Esta começa com um grito que ao mesmo tempo é uma palavra de ordem e um encorajamento por parte dos Bispos: “Firmes na Esperança”! Comemorando dez anos de independência o retrato do país está bem desenhado na carta pastoral de Fevereiro de 1986: “Nós angolanos, celebramos os dez anos de independência, infelizmente dez anos de armas nas mãos. Como se tanto não bastasse, o espectro da guerra alarga-se cada vez mais, guerra fratricida que vai desgastando o país. Até forças estrangeiras fazem da nossa terra campo de batalha. Somos dizimados física e moralmente. A fina flor da nossa juventude vai tombando na frente dos combates. E muitas vitórias anunciadas são vitórias de morte e destruição.
Nós, porém, repetimos: «a Paz é possível» ”.
A paz na visão dos Bispos, já nessa fase, não só é possível, como é uma exigência. Daí que: “em nome das crianças, em nome dos velhos, em nome dos mutilados, em nome da juventude, cujo futuro até agora foi gravemente hipotecado, em nome de todos os que sofrem os horrores da nossa guerra, pedimos a quantos podem congraçar as partes desavindas – e neste caso poder é dever – que dêem os passos necessários, indispensáveis para o sol auspicioso da paz brilhar na nossa terra”.
Esta é também a fase das primeiras negociações entre o MPLA e a UNITA. Gbadolite, primeiro, e, Bicesse, depois. É a seguir a cimeira de Gbadolite, no ex-Zaíre, e o por ocasião dos catorze anos de Angola que o pronunciamento dos Bispos conhece a segunda reacção oficial, pública, da parte do governo.
Os acordos de paz de Bicesse, bem como as primeiras eleições em Angola merecem vivos aplausos por parte do Episcopado católico: “Felizes os Obreiros da Paz”! Lembra Ele que “… todas as forças são poucas para levantar Angola, a começar pelas vias de comunicação, verdadeiras artérias da sua vida socio-económica. Praza a Deus que lhe não faltem ajudas isentas e bastantes. Quanto a nós Angolanos, todos não somos de mais para tão urgente e patriótica missão. A pátria conta com todos nós”.
Cinco anos de desespero
A segunda metade da década dois de Angola é das mais conturbadas da história. O conflito pós eleitoral é o mais violento de sempre. As esperanças e a boa vontade das pessoas são ignoradas. A apreensão cresce e “A Igreja não pode conformar-se com este estado de frustração e o sofrimento em que o povo se vê novamente imerso. Por isso aqui vimos falar em nome dele, gritando a todos os políticos e responsáveis pelo processo eleitoral de Angola: «Salvai-nos, que perecemos». Trinta dias depois os bispos perguntam: “Uma nova guerra como iria acabar? Com negociações? Com diálogo? Com algum mediador? Então escutem-nos. E com urgência. Aquilo que um dia iriam fazer para a guerra acabar, façam-no já agora para ela não começar”.
A pergunta não é respondida. O apelo não é levado em conta. A situação deteriora-se rapidamente. A fome, a dor, a miséria e a morte graçam pelo país. A ajuda humanitária é muitas vezes condicionada e usada como forma de pressão. As armas falam alto por toda Angola. Contudo a CEAST grita: “Em nome do povo e em nome de Deus, pedimos de todo o coração ao Governo e a UNITA que regressem imediatamente à mesa das conversações, e não venham de lá sem um cessar-fogo assinado que acabe com o inferno desta guerra injustamente imposta ao povo angolano”.
Terceira década
Os acordos de Lusaka marcam a terceira década de vida de Angola. Tal como por ocasião dos de Bicesse, esses acordos foram saudados pelos bispos com alegria e satisfação. Eles lembraram aos políticos e não só, que “o amor à Pátria é uma força poderosa que a torna una e coesa. Mas como pode haver amor à Pátria se não houver amor aos compatriotas? Sem este, a Pátria estaria exposta à sua própria ruína”.
A paz e a tranquilidade de Lusaka duram pouco tempo. A guerra volta ao país. Volta também a destruição. Os Bispos apreensivos lançam um veemente apelo aos homens da guerra e fazem saber que “as motivações da guerra em Angola têm sido qualquer coisa menos o bem dos angolanos”. E acrescentam: “ É impossível amar o povo e fazê-lo sofrer. E quem o não ama não é digno de ser seu governante”.
Os acordos do Luena fecham os anos de guerra em Angola. A preparação para as eleições e os três anos sem guerra devolvem aos poucos a esperança de dias melhores aos Angolanos. Desenvolvimento e progresso é desejo de todos. Vale no entanto recordar a chamada de atenção dos Bispos: “Se queremos construir deveras o futuro da Nação, temos a certeza de que isso jamais será possível sem consciências rectas, sem homens honestos e responsáveis na sua profissão, no seu emprego, no seu cargo, nos seus negócios, na sua vida, já pública já privada. Sem homens desta têmpera, o País não se pode erguer à dignidade que merece”.

Ao longo destes trinta anos, dois pronunciamentos têm resposta imediata da parte do governo de Angola. O primeiro é feito no Lubango. Neste os Bispos reagem ao facto de o Governo e o Partido terem declarado ser o marxismo-leninismo a linha ideológica oficial de Angola. A crítica à religião intensifica-se. A tendência à criar divisão dentro da Igreja e à separar esta da Igreja Universal acentua-se. Na carta pastoral os Bispos aproveitam para elucidar os cristãos e o povo sobre a fraqueza do sistema ideológico escolhido.
A reacção é forte. O editorial do Jornal de Angola de 26.01.1978, traz como título, e a vermelho, “OS BISPOS E A CONSPIRAÇÃO”. Seguem-se uma série de dificuldades para a Igreja. Missionários são impedidos de entrar. A Emissora Católica de Angola é confiscada. Aumenta a pressão sobre trabalhadores e funcionários católicos.
Uma outra reacção pública do governo tem a ver com a mensagem de 11.11. 1989. “Os últimos acontecimentos da história recente dizem-nos que os povos hoje caminham para a Paz, o progresso, a liberdade, a democracia. Um sistema político deste género dignificará a nação angolana, o seu povo e os seus chefes.
Não queiramos para Angola caminho diferente”.
A direcção nacional para os assuntos religiosos repudia a mensagem e taxa-a de panfleto clerical. “O documento subscrito pelos “Bispos Católicos de Angola” procura torná-los intérpretes “do povo sofredor” de Angola.
Mandatos desta natureza estão regulamentados por instrumentos jurídicos estabelecidos pelos direitos e deveres dos cidadãos, consubstanciados na lei constitucional a que todo o povo deve obediência incluindo “os Bispos Católicos de Angola”.”
Na mesma edição do Jornal de Angola, o jornal comenta a mensagem sob o título: «A DEUS O QUE É DE DEUS». Eis, um extracto do comentário: “Os bispos católicos e os fiéis da sua igreja têm outros meios e lugares próprios para buscarem a paz que dizem desejar, sem terem a pretensão de dar conselhos a quem deles não necessita, ou de se substituírem ao estado em que se integram. “A César o que é de César e a Deus o que é de Deus”.”

Samy de Jesus, Jornalista da Rádio Benguela

«A UNITA NÃO SE ADAPTA A CIDADE»

O título é tirado de um artigo de opinião do jornalista e escritor angolano, José Eduardo Agualusa, publicado em finais de 1992,na revista portuguesa de "Política Internacional", a seguir ao massacre de Luanda e na eminência da guerra pós-eleitoral. O artigo propunha-se compreender a lógica do conflito angolano a partir da politização da etnicidade e, ao mesmo tempo, um esforço de paz do autor.
No essencial, sendo um artigo descritivo, Agualusa limita-se a expor aquilo que são as suas percepções sobre as causas da guerra, desde 1975. Subjaz ao seu argumento a teoria essencialista da etnicidade, que admite ser a etnia algo essencial, i.e.,co-natural e inalterável. Esta teoria impede-o de olhar para o lado dinâmico da etnicidade, captável pela teoria instrumentalista. Com uma terceira via, i.e., a junção das duas abordagens, conseguiria captar os lados estáticos e dinâmicos da etnicidade e, muito provavelmente, as suas conclusões seriam outras e muitos mais aplicáveis.
A par do lado mais teórico, o artigo peca por defeito ao não considerar as contradições das elites dos movimentos de libertação nacional como prolongamento daquelas da sociedade angolana colonial, com a sua esclerose de classificação: brancos, assimilados de facto e por escolaridade e os indígenas... Também não capta a intensidade diversificada do colonialismo de região para região.
Posto isso, é importante dizer o seguinte: as contradições entre as leites angolanas não eram, necessáriamente, inconciliáveis. Mas no contexto da luta armada era algo difícil de superar, por uma razão que nos parece óbvia: as elites luandenses, bem ou mal, estavam habituadas a conviver entre os três grupos com dificuldades razoáveis; as elites bakongo olhavam para aquelas como prolongamento do colono, que os espolheu das suas terras e o obrigou-os a um exílio forçado; as elites do planalto, consciencializadas da sua situação de opressão e exploração pela educação protestante,olhavam para as elites luandenses como prolongamento daqueles que levavam os seus para as roças do norte (=k'ondalatu).
A UNITA surge em 1966, numa altura em que FNLA e MPLA disputavam a primazia da representação da luta de libertação nacional angolana. Saídos da FNLA, os líderes da UNITA não terão ficado indiferentes ao resultado do 15 de Março de 1961, quando camponeses Ovimbundu foram barbaramente mortos pelas duas partes:UPA/FNLA e tropas coloniais. Estava assim instalada a dificuldade de coabitação com a FNLA.
A opção de entrada pelo leste, pensamos estar ligada a proximidade com o Congo-Belga, de onde vinham; com a independência da Zâmbia e boas relações com Kaunda; com a presença pouco intensa dos colonos nas terras do fim do mundo; e, sobretudo, disputar um espaço de luta aberto, já que a FNLA gozava de uma hegemonia na zona norte.
Vamos dar um salto para 1974-75, por razões de economia de tempo e espaço. Quanto a penetração na cidade, depois do 25 de Abril de 1974, é obvio que cada um dos movimentos contou com os trunfos que tinha na mão: a sua composição e o conhecimento dos lugares. Sendo os dirigentes do MPLA, esmagadoramente, provenientes de Luanda e conhecedores do meio, tinham supremacia de afirmação em relação aos outros. Os dirigentes da UNITA, esmagadoramente, provenientes das regiões do planalto central,fizeram o lógico:implantar-se nas cidades do Huambo, Benguela e Bié, já que tinham membros dessas zonas. Na disputa de Luanda, a UNITA estava em desvantagem por não conhecer o meio e, para ajudar a festa, foi apoiada pela África do Sul do Apartheid, regime abominado em África.( Talvez aqui o «pecado» seja a homegeneidade étnica). A FNLA tentou disputar a capital, mas tinha a desvantagem dos seus homens que, por razões óbvias, não dominavam ou não falavam mesmo o português e, para ajudar a festa foi apoiada pelos zairenses de Mobuto, regime detestado na região.
Num contexto em que quem tem a capital ganha a luta, o MPLA tinha tudo ao seu alcance para ser o «primo inter pares». Com a incapacidade de conviverem e partilharem os ganhos da luta, só restava o que conhecemos: afastar os outros da capital.Chega-se,assim, ao que interessa: a UNITA recua para o Huambo, donde é corrida, restando-lhe, mais uma vez a mata para sua sobrevivência, enquanto a FNLA regressa a procedência e desaparece.
Volto ao princípio dessa nossa conversa: há uma incapacidade congénita da UNITA em adaptar-se à cidade ou as circunstâncias da luta de libertação e depois de sobrevivência empurraram-na para a mata, donde conseguiu reerguer-se? A mata foi uma opção ou consequência do desenrolar dos acontecimentos? O presente da UNITA, i.e., os últimos três anos, mostram que ela é capaz de viver na cidade(=Luanda), basta que tenha tempo e oportunidade para se socializar. Aliás, Huambo e Benguela/Lobito são cidades, por sinal segunda, terceira e quarta de Angola.
Termino com o leitor que teve paciência de nos acompanhar e, certamente, dirá: qual é a tua agora? O que pretendes? Queres negar que os maninhos são uns gajos da mata ou inadaptáveis à cidade? Ou apenas perder tempo e dar largas à tua imaginação e mostrares um pouco da tua lata? A resposta é simples: trazer para debate ideias feitas ou «verdades auto-evidentes» que analisadas com algum rigor e desapaixonadamente, embora com dose de subjectividade própria das ciências sociais, podemos apurar e afinar as nossas percepções. Também estamos certos de que os leitores não estão esquecidos da finalidade deste espaço:debate!!! ndanda

Upindi Pacatolo

quarta-feira, novembro 02, 2005

NUMA ALDEIA PERTO D'AQUI

HÁ DOIS ANOS QUE O POVO LUTA

Para lá do asfalto, a menos de 95 quilómetros dos Hummer’s, dos Jeeps Vx, dos Toyotas Rav4, um pouco distante dos concursos de “Miss”, existe uma “Ombala” chamada Tchiaia. Quase perdida em arbustos, fica a quarenta minutos a pé no sentido leste da via do Samboto. É a sede de cinco aldeias, nomeadamente, Pedreira, Kandongo, Samangula, Kawio e Tchiaia, todas elas pertencentes à comuna do Sambo, município do Tchikala Tcholohanga, província do Huambo. Lá onde os telemóveis são só brinquedos dos adultos visitantes, onde a energia eléctrica só está na memória de alguns que conhecem, quando muito, a sede da comuna, as crianças têm um sonho: o de receberem enxadas e sementes para sustentarem suas famílias.
A aldeia ressurgiu há dois anos e carece de quase tudo: desde à alimentação, serviços básicos de saúde, acesso à educação e ensino, até ao apoio na actividade agrícola – a principal fonte para o auto-sustento. Entre os populares, há os retornados da Zâmbia, alguns são viúvos, outros velhos incapacitados e boa parte das crianças é órfã. O apoio do PAM terminou em Maio último enquanto que as últimas chuvas com granizo destruíram as plantações. Hoje, o sustento das famílias, cuja dieta forçada é a batata-doce, é uma responsabilidade partilhada com a própria criança logo que completa 11 anos. Vive-se do cultivo e do fabrico de carvão. O ganho diário pelo biscate no campo é 200 Kz por adulto e 150 Kz quando se é mais jovem; já no carvão, uma criança pode fabricar até cinco sacos de cada vez. “Mete-nos até vergonha ter de pedir ajuda, nós que sempre fomos um povo trabalhador”, desabafou um adulto.
Desde cedo, as crianças dominam a auto-medicação usando raízes silvestres. É a alternativa face à inexistência de um posto de saúde e à escassez de dinheiro para pagar um enfermeiro particular pelo tratamento. “Quase todos os recém-nascidos faleceram este ano, só na sede da Ombala. Até agora, o número total é de 17 óbitos, dos zero aos 2 anos e meio”, revelaram alguns líderes da comunidade. A fonte de água para o consumo é um dilema: todo o mundo sabe que é antiga e tem bichos, incluindo cobras, mas não existe outra alternativa.
A única escola foi construída por uma ONG, em 1996, e a sua cobertura foi saqueada durante o conflito armado. Nela, três professores atendem 300 crianças, da iniciação à segunda classe, sendo parte considerável dos alunos maiores de 14 anos. Os que passam para a 3ª classe enfrentam sete quilómetros a pé para chegarem à escola na sede da comuna de Sambo.
O consumo excessivo do kaporroto, aguardente produzido localmente, é companhia dos adultos às tardes, distraindo uns e fazendo brigar outros. Bebe-se mais do que se come. Pelas manhãs, o movimento das crianças divide-se em dois galhos: umas indo à lavra, outras para a escola. Destinos diferentes, mas algo em comum: todas cheias de feridas de bitacaias e suas roupas de tão sujas e rotas (na vida real) até parecem indumentárias de teatro comunitário.
Se o Mpla é o único partido na zona, a igreja católica ganha concorrente, a adventista, que já tem um fiel dedicado (a aldeia tem mais de 200 homens). Mas a última campanha de evangelização dos adventistas provenientes do Huambo, durante um fim-de-semana, deu mais pontos aos católicos, de si já líderes das simpatias em função de alguma caridade recente aos órfãos e vulneráveis: tudo porque, no culto, um visitante terá dito que “os irmãos que adoram no domingo, adoram no mesmo dia que os palhaços”, o que ofendeu até as autoridades locais. Nos finais de semana o futebol é rei, sem técnica, táctica e onde ninguém sabe perder; mas vale a intenção: “assim as crianças se distraem das makas da guerra… e nós também”.
“Kwachas” e “MPLosos” de ontem, angolanos unidos hoje pela paz, há dois anos que lutam pela sobrevivência, pelo direito de recomeçar a vida em Tchiaia, sua aldeia do coração. Qualquer apoio é para ontem e aqui fica o SOS. Para além do governo de Angola, quem será o rico, o político, o amigo ou filho do Huambo que pode ajudar esse povo?

Gociante Patissa, Huambo, 30 de Outubro de 2005